O Novo Fundeb e a questão racial

Celebrada por diferentes atores sociais, a aprovação do novo Fundeb representa uma importante vitória para a educação básica pública brasileira. Afinal, é sob a responsabilidade de estados e municípios que se encontram aproximadamente 38 milhões de matrículas, da educação infantil ao ensino médio. Isso sem acrescer à conta o cômputo daquelas que recentemente migraram da rede privada para a pública, em decorrência dos efeitos econômicos da pandemia. Expressão mais bem-acabada da atuação do Legislativo, em que pese a atuação omissa do Executivo, a Emenda Constitucional 108/2020 pode ser entendida, sem embargo, como um avanço significativo em relação às duas outras que a precederam e implementaram o Fundef e o atual Fundeb, respectivamente. A complementação da União ao fundo que passa dos atuais 10% para 23%, em relação ao valor do Fundeb, constitui, obviamente, um dos aspectos centrais, por ter implicações na própria engenharia federativa. Sua implementação a partir de 2021 insta a União a assumir em alguma medida sua condição de ente supletivo e redistributivo frente aos governos subnacionais, conforme positivado na Carta de 88. Todavia, não podemos nos esquecer que os recursos destinados à composição dos fundos ainda estão longe da perspectiva da educação de qualidade. O montante estimado de 157,9 bilhões de reais para 2020 representa apenas um percentual em torno de 2,16% do PIB e 4,9% de toda a receita pública arrecadada em 2019.

De todo modo, a nova lógica de distribuição do fundo também pode ser considerada um importante ganho, já que o modelo híbrido possui um caráter redistributivo, especialmente por centrar atenção ao nível socioeconômico dos municípios, independente da condição tributária do Estado no qual se situam, bem como nas suas respectivas redes de ensino, com os mecanismos do valor anual por aluno (VAAF) e valor anual total por aluno (VAAT).

Um dos maiores méritos do novo Fundeb, todavia, é pouco visível à primeira vista. Trata-se da inserção do § 4˚ no art. 211, que positiva o princípio da equidade na educação. Até agora, a equidade só havia figurado entre os quesitos do financiamento do art. 211 a partir da emenda constitucional 59/09. Isto vem reforçar os princípios sob os quais deveria erigir a educação brasileira, postos no art. 206, ou mesmo dentre aqueles sobre os quais deveria ser a garantia do dever do Estado na oferta educacional (art. 208). Ou seja, o capítulo direcionado à educação deve, doravante, reconhecer o princípio da equidade como um de seus pilares estruturantes, diante da reiterada constatação de desigualdades intraescolares significativas, sobretudo quando se considera o recorte racial. Dados da Prova Brasil de 2017 mostram uma distância de 24 pontos entre grupos estudantes brancos e negros (autodeclarados pretos e pardos), na média de matemática do 9˚ ano, o que corresponde a mais de 3 anos de diferença de aprendizado. Já as chances de conclusão do ensino médio para alunos negros são bem menores (22% aproximadamente, em 2010) do que para os brancos.

Ora, não é necessário ter lido Aristóteles ou Rawls para se concluir que a defesa da igualdade de tratamento na educação por si não apenas sanciona desigualdades existentes, como tem potencial para aprofundá-las. Ignorar tal aspecto é não considerar a própria História do Brasil. As populações de origem africana e indígenas foram sistematicamente excluídas do processo de escolarização e, consequentemente, dos espaços sociais e posições no mercado de trabalho de maior prestígio. Na área educacional, o caráter ativo do Estado, com o discurso e emprego de políticas universais, tendeu a aumentar o abismo das desigualdades. A análise do número de matrículas/ financiamento em uma série histórica desde 1970, por exemplo, aponta que a destinação do financiamento foi inferior ao crescimento do número de matrículas. Como se sabe, no período de 1965 a 1985, a expansão do ensino ocorreu acompanhada do corte de verbas e rebaixamento a qualidade do ensino ofertado e a remuneração dos profissionais que atam na educação básica, tendo em vista a supressão de vinculação de recursos. Não por acaso, observa-se que este fenômeno ocorre justamente quando as escolas chegam às periferias e o ensino fundamental passa a ser uma realidade razoavelmente palpável para a população é negra, o que demandaria investimento em estratégias de modo a acolher esses novos sujeitos de direitos, garantindo sua permanência na escola.

Somado a esse cenário de subfinanciamento educacional, a trajetória e o desempenho desses sujeitos, em termos de aprendizagem, são definidos na mesma perspectiva que da população branca, ignorando-se, assim, fatores estruturantes das desigualdades observadas na sociedade brasileira, como o racismo. Esse estado de coisas tem levado, no campo da educação, a uma lógica meritocrática na aferição dos resultados e possíveis desdobramentos na distribuição dos recursos discricionários às escolas, desconsiderando seus contextos e o público atendido. Tendo em vista este cenário, a alternativa democrática para se redistribuir a verba seria implementar princípios de justiça corretiva na educação básica.

Deste modo, é necessário e urgente colocar em prática o critério de equidade referido no Novo Fundeb. A expressão desse pressuposto em termos de distribuição de recursos financeiros às escolas implica na aceitação de que políticas universalistas pouco podem fazer para a redução das desigualdades educacionais, na sua dimensão racial. Se, de fato, busca-se lidar estruturalmente com o problema, deve-se, sim, construir um contrato ético também para o financiamento educacional que considere as diferenças de sucesso acadêmico de crianças brancas e negras dentro dos sistemas escolares. Um caminho assertivo seria avaliar a unidade escolar para além dos indicadores sintéticos empregados, incluindo variáveis que considerem nível socioeconômico, mas, principalmente, o critério racial.

A regulamentação do Novo Fundeb, por ser agora um fundo permanente, precisa traduzir de modo socialmente justo o princípio da equidade emendado à Constituição Federal. Para tanto, os 2,5% que compõem o VAAR no novo fundo precisam ser expressos em termos de equidade racial, no que tange ao financiamento. Tal orientação poderia ressignificar os ditames do artigo 12, V, art. 13, IV e art. 24, V da LDB, ao mesmo tempo em que permitiria a consecução do art. 26-A. É hora, pois, de o Movimento Negro, mas também todos os outros sujeitos que lutam por uma educação básica pública de qualidade disputarem essa agenda de nova lógica de financiamento educacional.  Não defendemos uma sociedade antirracista e menos desigual? Pois bem, podemos construí-la também na política de financiamento educacional. Na sigla, inclusive, já está posta e acabada a questão: o “R” de VAAR refere-se a “racial”, não a “resultados”, como querem alguns.

Zara Figueiredo Tripodi –  Profª. do Departamento de Educação da UFOP/MG
Eduardo Januário –  Prof. da Faculdade de Educação da USP
Rosenilton Silva de Oliveira – Prof. da Faculdade de Educação da USP
Fonte: GGN

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