Por Vincent Bevins
A brutal desigualdade brasileira é tão onipresente que os que vivem aqui simplesmente param de notá-la. Uma mensagem inesperada do exterior serve como lembrete de um tema tão pouco discutido tanto na sociedade quanto na mídia e na eleição atual.
Moro no Brasil há mais de quatro anos, o que tem sido incrível em quase todos os aspectos, incluindo as formas que arrumei para me adaptar à cultura local. Por outro lado, há partes do país e do meu processo de adaptação que não gosto. Odeio sobretudo a forma como me tornei insensível a níveis chocantes, brutais e ridículos de desigualdade, que minam o avanço do país. Me acostumei a eles, passei a vê-los como algo de certo modo aceitável.
Normalizar a desigualdade é uma das características fundamentais para ser um autêntico “brasileiro”. A maioria dos estrangeiros percebe isso logo que chega ao Brasil. Os locais entendem que a desigualdade extrema é apenas um fato da vida e trazer o assunto à tona é considerado de mau gosto, assim como tentar transgredir os limites de classe estabelecidos. Não à toa, se preocupar demais com esse assunto ou querer conhecer o Brasil fora dos círculos da elite é considerado “coisa de gringo”. Quanto mais me vejo virando local nesse aspecto (e apenas nesse aspecto), mais desconfortável fico.
Recentemente, minha ficha caiu de um modo inesperado: através de um WhatsApp enviado por uma amiga brasileira que visitava os Estados Unidos pela primeira vez.
De Nova York, ela me escreveu o seguinte:
“Uau, estou realmente impressionada com a igualdade social por aqui. Parabéns”.
E completou: “Os negros realmente fazem parte da sociedade aqui, não são excluídos como no Brasil”.
Essa mensagem quase explodiu minha cabeça. Sempre achei meu país extremamente desigual e, mesmo lá, Nova York é famosa por ser uma das cidades mais desiguais.
Sou nascido e criado nos Estados Unidos, um país cheio de problemas óbvios, provavelmente mais problemático que o Brasil, embora nenhum desses problemas me pareça relevante para esta discussão. Temos, por exemplo, uma conhecida tendência a atirar bombas em países alheios, matando centenas de milhares de pessoas sem nenhum resultado positivo perceptível. Além disso, a injustiça social sempre foi um de nossos maiores problemas.
Temos um dos piores níveis de desigualdade do mundo entre os países desenvolvidos e é claro para mim que temos um grave problema racial, especialmente no que tange o tratamento de cidadãos negros. Para completar o quadro, a desigualdade americana está se agravando, tanto que Obama se pronunciou recentemente, salientando a necessidade de combater a “perigosa e crescente desigualdade”.
Talvez nem todos os brasileiros que visitam a Europa ou os Estados Unidos sintam o mesmo que essa minha amiga (que não é nem de São Paulo nem da elite) sentiu, mas o fato de uma brasileira poder chegar em Nova York e achar que justo aquela cidade seja um farol de harmonia social é um lembrete chocante do quão profunda e problemática é a desigualdade brasileira.
Mas isso não devia ter me chocado. Logo que cheguei aqui eu era constantemente surpreendido por elementos de uma cultura que por vezes me parecia de outro tempo. Apartamentos com duas portas distintas (uma para a família, outra para as pessoas que a servem). Jovens de classe média que nunca lavaram suas próprias roupas ou limparam seu próprio banheiro (nem muito menos tiveram um emprego antes de terminar a graduação) e que casualmente deixam escapar comentários classistas ou racistas que em outros lugares te fariam ser permanentemente expulso do convívio civilizado.
Vários desses comportamentos foram se tornando normais para mim, como imagino que tenham se tornado normais para a maioria dos brasileiros há muito tempo.
Claro que é fácil para mim falar desses problemas enquanto ocupo uma posição de homem branco que veio da Europa e dos Estados Unidos, locais que boa parte da classe média alta de São Paulo valoriza ainda que, ironicamente, possam ser considerados brutos, reacionários, racistas e de muito, muito mau gosto por lá.
Não sem razão, pode-se argumentar que pessoas como eu se beneficiam desse preconceito, mesmo contra nossa vontade. Porém, meus amigos brasileiros de origem africana ou indígena ou que vieram da classe trabalhadora, normalmente veem suas críticas a essa divisão de classes desmerecidas como se eles fossem bolcheviques perigosos ou arrivistas que querem pongar no sistema de cotas toda vez que reclamam disso.
É verdade que o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem reduzido a desigualdade de renda na última década, mas o país ainda tem um longo caminho pela frente se quiser alcançar tanto a justiça social quanto o aumento de sua produtividade econômica. Olhando para a eleição que se desenrola, no entanto, a impressão que dá é que o país só precisa de algumas correções tecnocratas, ou de um candidato um pouco menos manchado por acusações de corrupção. Acompanhando para o noticiário, você pode pensar que os avanços sociais alcançados desde 2003 já foram revolucionários e assustadores o suficiente e que já não há muito o que dizer sobre isso. Ao estudar qualquer grande jornal brasileiro, você logo constata que são todos escritos pela classe média alta e branca para a classe média alta e branca, porque de fato são.
Durante o episódio dos rolezinhos, no começo do ano, houve um debate sobre o chamado “apartheid” brasileiro. Acho a palavra deslocada já que não existe uma sanção do Estado em relação a essas divisões. Uma amiga disse que o Brasil tinha praticamente um sistema de “castas”, o que acho mais próximo da verdade considerando que, para um membro da classe média local, a ideia de chegar num almoço de domingo e apresentar à família um namorado da classe trabalhadora é um fato basicamente inédito. De fato, conheci no Brasil pessoas de ambas as classes sociais que admitem nunca ter tido uma conversa de verdade com um membro de outra classe.
Mas por que não falamos sobre isso? Porque é tudo muito óbvio.
Fonte: From Brazil