O presidente negro: síntese do pensamento racista de Monteiro Lobato

Por: Edgar Indalecio Smaniotto

Em O Presidente Negro ou Choque das Raças (Editora Globo, 2008), publicado originalmente em 1926, Monteiro Lobato, neste seu único romance adulto e de ficção científica, constrói uma narrativa que se passa em dois momentos distintos: em 1928 e no ano de 2.228, ou seja, trezentos anos no futuro.

Ayrton, cobrador da empresa Sá, Pato & Cia. sofre um acidente automobilístico na região de Friburgo (Rio de Janeiro) e é resgatado pelo recluso professor Benson, que o leva para sua residência. Ali, ele trava contato com a grande invenção de Benson, o “porviroscópio”, um dispositivo que permite ver o futuro, e com miss Jane, a bela e racional filha do cientista.

Como é de se esperar, Ayrton se apaixona platonicamente por miss Jane, e passa a frequentar a residência do professor Benson, mesmo após a morte do mesmo, que antes de morrer destruiu o “porviroscópio”. Em suas visitas, sempre aos domingos, Ayrton houve o relato de fatos ocorridos no futuro, no ano de 2.228, envolvendo a eleição para presidente dos Estados Unidos. Como assistidos por Miss Jane antes de seu pai destruir o “porviroscópio”.

Neste futuro existem três partidos americanos: o Partido Masculino, o Partido Feminista e o Partido Negro. Tendo em vista a população de então, descontado os menores que não podem votar, cada partido teria respectivamente o seguinte número de eleitores: 51 milhões (PM); 51 milhões (PF); e 54 milhões (PN); uma vez que o Partido Feminista é composto apenas por mulheres brancas. Os negros tem em média pouco mais que um terço dos votos, inviabilizando assim a eleição do representante de seu partido.

images1Esta situação é modificada no ano de 2.228, nesta eleição três candidatos disputam o cargo para o executivo norte-americano: Kerlog (que pretende ser reeleito pelo PM); Evelyn Astor (pelo PF) e Jim Roy (pelo PN). A divisão dos brancos em duas candidaturas possibilita a eleição de Jim Roy. Monteiro Lobato permeia a narrativa com algumas considerações raciais. Diz que tanto nos Estados Unidos como no Brasil houve erros iniciais na composição destas nações, este erro foi trazer o negro para a América, quando deveria ter permanecido na África.

Lobato então afirma que a segregação como implantada nos Estados Unidos é a melhor saída para este problema. Aqui Lobato faz um crítica direta ao antropólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda, que em um texto publicado em 1911 (Sur les Métis au Brésil / Paris, Imprimerie Devouge) desenvolveu suas idéias sobre o branqueamento futuro da população brasileira, que aconteceria até o início do século XXI.

Mesmo esta teoria, extremamente racista, não era o suficiente para as pretensões eugênicas de Lobato. Em um trecho de O presidente negro o autor declara “A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O Negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável penhora de caráter”.

No romance, entretanto, ele postula uma solução eugênica para o Brasil: no futuro as regiões sul e sudeste se uniram à Argentina e ao Uruguai para formar a grande República Branca do Paraná, enquanto as regiões norte e nordeste foram entregues aos negros, índios e mestiços. Já os americanos, agora com um presidente negro, não se sujeitariam em dividir sua nação ou ferir sua constituição expulsando ao negros para a África, assim neste país a solução foi de outra magnitude.

Inicialmente Lobato invoca um processo artificial de branqueamento, que teria deixado os negros “horrivelmente esbranquiçados”, mas mesmo após a “despigmentação” os negros não poderiam ser aceitos pelos brancos orgulhosos de sua raça e cor diante daquele “esbranquiçado – um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”(como a de Michael Jackson?).

É então que um inventor americano John Dudley propõe uma solução. Alisar os cabelos dos negros através do uso de raios ômegas. Milhões de negros, na verdade a totalidade destes, passam pelo processo de alisamento, sendo que em todos os bairros de todas as cidades americanas filiais da empresa de Dudley são abertas. Monteiro Lobato então revela a grande saída americana, o genocídio, os ditos raios omegas, além de alisarem os cabelos dos negros, provocam a esterilização de toda à raça negra. Lobato saúda a grande solução americana.

O presidente negro, ainda hoje, é uma leitura importante, principalmente pelo fato de o autor não tentar esconder seu racismo, sob o manto de uma pretensa democracia racial. O livro de Lobato sintetiza um pensamento racista dominante na época, mas muitas vezes escondido em malabarismos retóricos. É um material indispensável para entender o pensamento racista que permeava a sociedade brasileira no início do século XX.

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O Projeto Arqueologia da Ficção Científica tem por objetivo resenhar romances e contos de ficção científica publicados, em língua portuguesa, do advento da ficção científica ao fim do século XX.

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Edgar Indalecio Smaniotto

Filósofo, mestre e doutorando em Ciências Sociais pelo programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP – Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília.

 

Resenhista das Revistas macroCOSMO.com (http://www.revistamacrocosmo.com/portal/), e Scarium Magazine.

Articulista do Jornal GRAPHIQ e da Revista Banda Desenhada Jornal (de Portugal).

Autor do livro: A FANTÁSTICA VIAGEM IMAGINÁRIA DE AUGUSTO EMÍLIO ZALUAR: ensaio sobre a representação do outro na antropologia e na ficção científica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Corifeu, 2007.

 

 

 

Fonte: Scarium

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