O projeto desta professora sobre equidade de gênero está transformando a vida de alunos do DF

De criança invisível a mulher inspiradora. Conheça a trajetória de Gina Vieira Ponte.

Foto: ARQUIVO PESSOAL

Por Ana Beatriz Rosa Do Huff post Brasil

Para Gina Vieira Ponte, quando criança, ir para escola era saber que teria de enfrentar um espaço cheio de hostilidade. Mas foi ao receber o afeto de uma professora que ela descobriu que não precisava se tornar uma criança invisível para enfrentar o racismo.

Hoje, aos 45 anos, a pedagoga e idealizadora do projeto Mulheres Inspiradoras enxerga nas instituições de ensino a possibilidade de reinventar o mundo: “Ter a consciência de qual é o meu lugar do mundo me fez ter um compromisso ainda maior com a educação”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil.

Com apoio do governo federal e de organizações internacionais, o projeto criado por ela que trouxe o debate sobre equidade de gênero para alunos do 9º ano do Centro de Ensino Fundamental 12, de Ceilândia, será expandido para outras 15 escolas do Distrito Federal.

O “Mulheres Inspiradoras” nasceu da vontade de Gina de mudar a realidade ao seu redor. Por meio das redes sociais, ela percebeu que suas alunas reproduziam padrões de gênero em que a mulher era sempre objetificada e hipersexualizada.

Em 2014, ela resolveu compartilhar com os alunos de cinco turmas as biografias de mulheres que considerava referências e tinham diferentes origens, idades e raças, como O Diário de Anne Frank, Eu sou Malala, a biografia da menina paquistanesa, e Quarto de despejo: diário de uma favelada, da escritora Carolina Maria de Jesus.

Ela convidou os adolescentes a escolherem suas próprias inspirações e pediu para que eles contassem a história das mulheres que os encantavam, como mães, avós, amigas. E foi aí que o projeto ganhou toda a sua força.

“Essa foi a fase mais inspiradora. Eu não tinha dimensão da onde eu estava mexendo. O que eu queria incialmente era que cada aluno refletisse sobre a sua própria história, exercitasse a escrita autoral e trabalhasse com a leitura. Mas o projeto foi além disso. Em mais de 150 entrevistas, nós descobrimos histórias de violações de direitos. E a gente tem uma sociedade que não valoriza e não dá visibilidade a elas”, compartilha em entrevista ao HuffPost Brasil.

De lá para cá, as histórias foram compiladas em um livro que é o retrato de Ceilândia – cidade satélite marcada pela violência e pelo tráfico de drogas em Brasília.

Além do livro, a educadora também recebeu prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Ibero-americano de Educação, que já acumularam cerca de R$ 100 mil revertidos para a escola.

Mas, talvez, a principal contribuição de Gina esteja além dos números e menções.

Ela não se contenta com fórmulas simples e tem a coragem de enxergar a educação não apenas como substantivo feminino, mas verbo-ativo que requer a força de uma mulher como ela para ser transformadora. A idealizadora do projeto Mulheres Inspiradoras falou sobre sua trajetória de racismo, superação e aprendizados. Leia alguns trechos da entrevista abaixo:

“Você não foi feita para estudar.”

“A minha história na educação foi marcada por uma experiência pessoal. Aos 8 anos de idade eu conheci uma professora maravilhosa, a professora Creuza, que me fez ser uma criança diferente da que eu era. Eu já cheguei na escola muito abatida pelo racismo por ser uma menina negra, da periferia, filha de trabalhadores domésticos e analfabetos. Eu não me sentia parte da escola porque eu fui alijada de vários processos. Eu tinha uma dificuldade de aprendizado e não acreditava em mim. Até que essa professora entrou em minha vida e me cobriu com um afeto que eu não tinha conhecido. A minha representação de escola sempre foi um espaço de hostilidade, de agressão, por causa da minha cor, do meu cabelo. O meu maior sonho era ser uma criança invisível, porque eu achava que era essa a única forma de me livrar das agressões às quais eu era submetida.

Eu tive uma mãe incrível, uma mulher extraordinária que só tinha estudado até a quarta série, que trabalhou a vida inteira em serviços subalternos, como empregada doméstica, lavando banheiro, e ela tinha uma dignidade enorme. Na minha infância, as famílias não tinham muita noção do que significava tirar uma menina da escola para que ela fosse empregada doméstica. Minha mãe sempre me disse que enquanto eu quisesse estudar eu seria totalmente apoiada. Eu vi na educação uma possibilidade de mudança da minha própria história. A minha concepção de educação passa muito pelo apoio incondicional que eu tive dos meus pais para que eu estivesse plena na escola. E estar plena é poder estudar sem a exigência de ter que trabalhar.

Ter essa consciência profunda de qual era meu lugar no mundo, de que eu era descendente de uma mulher negra, alijada de todos os direitos que ela poderia ter, que aos cinco anos de idade ganhou uma enxada para trabalhar na roça como presente, me fazia sempre ter um compromisso com a escola, porque eu sabia que eu precisava honrar os esforços da minha mãe e do meu pai. Eu tinha que caminhar vários quilômetros a pé para frequentar as aulas porque eu não tinha dinheiro para pagar o ônibus, eu tive que me preparar muito na prova de seleção que era super-rigorosa porque eu não tinha grana para pagar cursinho preparatório. Eu entendi que não tinha nada mais engrandecedor do que influenciar a formação de outras crianças.”

“Eu não sabia que gente como você tinha essa vontade.”

“Terminei o ensino médio aos 17 anos, passei no concurso para professora com 18 e aos 19 eu já estava em sala de aula. E aí você começa a exercer a profissão naquela expectativa de que vai salvar o mundo e todas as crianças. Mas em pouco tempo eu fui percebendo que a escola é um espaço que pouco dialoga com os alunos. Eu entrei em um processo depressivo porque eu sofria em não ver sentido no que eu fazia e sofria por saber que aqueles jovens estavam desperdiçando uma oportunidade. Eu resolvi estudar um pouco mais, para tentar encontrar as respostas do porquê dessa falta de engajamento dos alunos. Eu entendi que, embora os meninos já sejam nativos digitais, a gente tem uma escola que funciona de forma analógica, com estruturas do século passado. Foi aí que eu entendi que eu precisava me reinventar, me ressignificar como professora. Eu fui atrás das tecnologias.

Entre algumas coisas que eu fiz foi criar um perfil em uma rede social para me aproximar dos meus alunos. Eu via os conteúdos que eles compartilhavam, aqueles que eles consumiam e num dado momento eu me deparei com alguns conteúdos que hoje eu entendo que recebem o nome de sexting. Um vídeo produzido por uma menina de 13 anos me chamou a atenção. Nele, ela colocava uma música para tocar e dançava. Mas a letra da música era extremamente pejorativa; a coreografia que ela fazia tinha um apelo erótico muito forte. Eu me incomodei porque eu fiquei pensando nos riscos que aquela menina poderia estar submetida. Eu achei que eu precisava fazer uma intervenção. Tentei problematizar a questão com algumas pessoas, mas eu não me dei por satisfeita com as respostas porque o que chegou para mim foi o discurso do senso comum, que é aquele de que se a menina fez isso é porque ela é mesmo uma periguete e ela merecia receber qualquer tipo de ofensa.”

“Como assim você não sabe sambar?”

“Foi aí que eu entendi que as nossas meninas, desde que chegam ao mundo, são expostas a representações sociais e estereótipos de conteúdos que sempre associam a mulher a objetos sexuais. Aquela menina, na verdade, postando aquele vídeo, buscava pertencimento e aceitação, porque a mídia e a sociedade dizem para essas meninas que elas só podem ser validadas como mulheres se elas forem capazes de suscitar o desejo masculino. E muitas vezes elas não têm a possibilidade de fazer um contraponto a essa representação ou mesmo de construir um pensamento crítico sobre aquilo.

Eu acho que a minha aluna tem todo o direito de postar o vídeo que ela quiser, mas eu entendo que ela tenha que ser esclarecida para que o faça com o entendimento de quais são as consequências.”

 

“Eu? Inspiradora?”

“Percebi que um caminho possível seria construir um projeto em que elas conhecessem outros referenciais de mulheres e fugissem desses estereótipos em que são colocadas. Surgiu o projeto Mulheres Inspiradoras. Eu propus que os alunos lessem 6 livros de autoras: O Diário de Anne Frank; Eu Sou Malala; Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada e três obras de uma grande escritora aqui de Brasília, a Cristiane Sobral. A obra dela trata da equidade-étnico racial, aborda o racismo, as representações em relação à estética e a identidade negra. Em paralelo, nós estudamos a biografia de 10 grandes mulheres. Eu fiz questão de escolher duas meninas de idades similares as das minhas alunas, mas coloquei um time variado. Então, tinha desde de mulheres idosas, como a Cora Coralina, mulheres que tiveram pouco acesso à escolaridade, como a Maria Carolina de Jesus, mulheres da academia, como Zilda Arns, mulheres brasileiras e mulheres de outras partes do mundo, como Rosa Parks. Eu queria que elas compreendessem que a qualquer tempo, em qualquer idade e lugar, pertencendo a qualquer etnia, as mulheres sempre contribuíram. E essa representação que as reduz à objetos é um equívoco. Porque nós mulheres somos grandiosas para simplesmente aceitarmos essa redução.”

“Não tem como fugir. O seu lugar é aqui.”

“Ceilândia é uma região periférica, é a maior região administrativa de Brasília e é reconhecida pelo alto índice de criminalidade e de tráfico. É uma cidade que nasceu sob o estigma de ser um grande centro de erradicação de invasores. Eu queria que eles pudessem ressignificar o olhar sobre a própria cidade, pela própria comunidade local a partir da narrativa de mulheres da vizinhança. Na última etapa do projeto, a gente propôs que os alunos olhassem para a vida deles e escolhessem uma mulher inspiradora que eles deveriam entrevistar e depois transformar a entrevista em um texto autoral.

Essa foi a fase do projeto mais inspiradora na minha opinião, porque eu não tinha dimensão da onde eu estava mexendo. O que eu queria incialmente era que cada aluno refletisse sobre a sua própria história, exercitasse a escrita autoral e trabalhasse com a leitura. Mas o projeto foi além disso. Ao longo do diagnóstico do que esses meninos sabiam sobre essas mulheres, eu percebi que em alguns casos haviam lacunas. Alguns não sabiam dizer a cidade onde a mãe havia nascido, detalhes da infância, outros sequer lembravam a data de nascimento delas. Com isso, a gente fez um trabalho minucioso e customizado para elaborar um roteiro que norteasse essas entrevistas. Quando eles retornavam dessas conversas, eles estavam muito impactados com os detalhes que descobriam. Um aluno me disse: ‘Nossa professora, eu descobri que minha mãe foi obrigada a abandonar a escola aos 11 anos de idade para trabalhar como empregada doméstica’. Outro me contou que descobriu que a avó ficou viúva e sozinha com dez filhos para criar, então ela teve que trabalhar arduamente em uma máquina de costurar para conseguir manter a sobrevivência da família. Em mais de 150 entrevistas, nós descobrimos histórias de violações de direitos. Mulheres que foram expulsas de casa porque engravidaram. Mulheres vítimas de violência sexual e doméstica. Alunas que tiveram as mães assassinadas por seus ex-maridos.”

Resistir e re-existir

“O Mulheres Inspiradoras foi um projeto totalmente fora da caixa. Além de tratar de um tema pouco abordado, ele também foi um projeto transgressor do ponto de vista das metodologias. Eu procurei usar menos aulas expositivas, ser menos palestrante e mais mediadora. Eu optei por metodologias ativas que exigiam um maior engajamento dos alunos, e isso surpreendeu alguns deles. Eu entendo que para o aluno aprender, ele tem que ser acionado no processo de aprendizagem. Ele não pode ser objeto, mas sujeito desse processo. Houve reações de surpresas e de descrédito. Um dos alunos me confessou que quando eu comecei a falar sobre as mulheres, ele não fazia ideia de quem elas eram, mas que depois descobriu a história grandiosa que havia por trás de cada uma. Foi um misto de surpresa e de estranhamento por saber que esse assunto não era um conteúdo formal do currículo da escola, mas um tema transversal das matérias que está sinalizado no currículo de Brasília.

O projeto foi desenvolvido em um componente curricular que não reprova. Então, os alunos sabiam que fazendo ou não fazendo eles iriam ser aprovados. Eu tinha muito medo que eles não se envolvessem, mas para a minha surpresa muitos deles fizeram muito além do que eu tinha pedido. Eu senti que havia uma demanda represada e reprimida no sentido em que tudo aquilo que a gente falava no projeto era uma inquietação, uma angústia que eles não tinham como colocar para fora. Quando a gente abriu esse espaço foi uma surpresa. Eu não imaginava o quanto eles iam se esforçar para realmente ter um debate qualificado. É claro que nesses debates apareceram a fala do senso comum, muito influenciado pelo o que eles veem na internet, mas foi uma oportunidade de desconstruir alguns conceitos errôneos que eles absorvem. Também teve a reação de reticência de alguns alunos que diziam que não iam fazer o que era pedido no projeto porque ia ter muito trabalho. No começo eu não sabia muito como lidar, mas depois eu percebi que aquele aluno foi condicionado pela própria escola a uma posição de passividade. O aluno chegou a verbalizar: ‘Professora, eu estou acostumado a copiar, você está me pedindo para que eu faça um texto da minha cabeça e isso é muito difícil.'”

A história não tem rosto de mulher

“Coletamos um material muito rico. Percebemos que o projeto era uma forma de dar visibilidade e valorizar a história dessas mulheres. Quando os alunos iam fazer a entrevista, elas ficaram surpresas de serem entrevistadas: ‘Mas eu sou uma mulher inspiradora?’ A gente tem uma sociedade que não valoriza e não dá visibilidade a essas histórias. E foi por isso que a gente decidiu transformar todas aquelas informações coletadas pelos alunos em um livro que foi lançado no dia 8 de março de 2016. Ele se tornou um documento histórico, porque compilou traços de Ceilândia nas histórias dessas mulheres.

Ganhamos muitos prêmios e o reconhecimento de instituições importantes. Ao todo, levamos para a escola cerca de R$100 mil. O que veio depois de finalizado as duas etapas do projeto foi poder ajudá-los a perceber o mundo de maneira mais crítica. Os alunos da primeira turma de 2014 são os embaixadores do Mulheres Inspiradoras e eles se sentem muito empoderados. O reconhecimento que o projeto ganhou abriu portas para eles. Eles passaram a conhecer espaços, por exemplo, que eles não tinham acesso. Eles foram ao salão nobre do Palácio do Buriti. E eu quero mais é que eles conheçam coisas novas para que eles possam sonhar coisas novas. Então eu vejo o projeto como uma oportunidade de ampliação de horizontes e perspectivas para eles.

Uma aluna chegou até mim para dizer: ‘Professora, eu só via notícia da minha cidade no jornal falando de coisas ruins. As vezes quando me perguntavam em que cidade eu estudava eu até tinha vergonha de dizer que era Ceilândia, porque as pessoas só falavam que aqui era a cidade dos bandidos.’ O maior impacto foi ver os alunos orgulhosos de suas origens. O mais legal é que eles saíam da escola, mas o projeto continuou a impactá-los. Um dia eu recebi uma mensagem de um deles: ‘Professora, eu me encontrei e descobri o que eu quero fazer da vida, eu quero trabalhar nos movimentos sociais e ajudar ao mundo a ser diferente.'”

Honra e legado

“O projeto teve essa perspectiva de honrar o legado de grandes mulheres. Mulheres que mudaram seus mundos, que tiveram contribuições decisivas e que nunca foram honradas como deveriam ter sido. A minha mãe, a professora Creuza, todas as mulheres que lemos e estudamos suas obras. As mulheres. Me sinto ainda mais feliz que a minha experiência seja um instrumento de fortalecimento para que outros professores abordem o tema em sala de aula. Eu preciso continuar com o meu papel, sobretudo em defender essa educação que é para a vida, para a cidadania. Me preocupa muito esse “aligeiramento” da formação que reduz a escola em um espaço moldado para você passar em uma prova, que é o vestibular. E aí todas as outras dimensões do aluno são ignoradas. Ele é visto como mais uma cabeça. Quem ele é, qual a sua trajetória, sua ancestralidades, inquietações, as angústias que ele traz e os sonhos desse aluno são todos deixados de lado. E é claro que isso impacta negativamente o processo de aprendizagem. É um desafio fazer esse trabalho de sensibilização. Eu estou em busca de construir uma escola que dialoga e faça sentido para o aluno. Porque ele é a razão de ser da escola.

Eu quero ajudar os meus colegas professores que querem fazer um trabalho bacana mas que muitas vezes se sentem sozinhos. Um dos meus objetivos é dizer para esse professor que o sofrimento dele, que a dor que ele sente, o abandono em sala de aula são sentimentos legítimos e não é nenhum demérito dele. Mas nós podemos unir forças para trabalhar com uma educação transformadora sem nos sentirmos sozinhos.”

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