O protesto dos cineastas contra a ‘política do coturno’

O filme Trabalhar Cansa, dos diretores Juliana Rojas e Marco Dutra, conquistou o Prêmio Governador do Estado para Cultura 2011, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, na categoria Cinema. O que não estava no script é que Juliana e Marco, no discurso protocolar de agradecimento ao receber o prêmio, lessem um manifesto, de cerca de três minutos, denunciando os episódios deploráveis ocorridos na USP, na Cracolândia e no Pinheirinho, em que a PM paulista agiu com violência contra a população. No começo a audiência tucana ficou calada, mas depois começaram vaiar para tentar acabar com o ato.

O texto lido por eles, conforme transcrição do Victor Furtado:

“Moção de repúdio à política do coturno em Pinheirinho”

De um lado, pelo menos 1.600 famílias que lutam pelo direito de morar no bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ocupação que tem oito anos de existência. Do outro, mais de 2.000 policiais militares e civis cumprindo ordens da Justiça Estadual e da Prefeitura de São José dos Campos, em favor da massa falida da empresa Selecta, pertencente ao mega-especulador Naji Nahas. Ainda que não houvesse outras circunstâncias agravantes no caso, já seria possível constatar que as instâncias dos poderes executivo e judiciário fizeram a opção, em Pinheirinho, pela lei que protege a especulação imobiliária, em detrimento do direito das pessoas à moradia. Vence mais uma vez a política do coturno em prol do capital.

De um lado, bombas, armas, gases, helicópteros, tropa de choque. Do outro, dois revólveres apreendidos. Não há notícia de que tenham sido usados. Uma praça de guerra é instalada – numa batalha em que um exército ataca civis. Não há plano de realocação das famílias. As que não conseguiram ou não quiseram fugir, ou receberam dinheiro para passagens para outras cidades, ou estão sendo mantidas cercadas, com comida racionada, como num campo de concentração. A imprensa não pode entrar no local, não pode fazer entrevistas, e os hospitais da região não podem informar sobre mortos e feridos. O que se quer esconder? O Governo do Estado lavou as mãos diante do caso, assim como o Superior Tribunal de Justiça. O Governo Federal tardou em agir. A chamada “função social da propriedade”, prevista na Constituição Brasileira, revelou-se assim como peça de ficção, justamente onde a ficção não deveria ser permitida.

Mais uma vez, o Estado assume o papel de “testa de ferro” para as estripulias financeiras da “selecta” casta de milionários e bilionários. A política do coturno em prol do capital vem ganhando espaço. Assim está acontecendo na higienização do bairro da Luz, em São Paulo, preparando-o para a especulação imobiliária; assim vem acontecendo na repressão ao movimento estudantil na USP, minando a resistência à privatização do ensino; assim acontece no campo brasileiro há tanto tempo, em defesa do agronegócio. Os exemplos se multiplicam. E não nos parece fato isolado que, hoje, a quase totalidade dos subprefeitos da cidade de São Paulo sejam coronéis da reserva da PM. Nós, trabalhadores artistas, expressamos nosso repúdio veemente a esse tipo de política. Mais 1.600 famílias estão nas ruas: a lei foi cumprida. Para quem?”


Saiba mais…

Trabalhar Cansa – Trailer

SOBRE O FILME

TRABALHAR CANSA é o resultado de uma parceria de mais de dez anos. Nós nos conhecemos na faculdade de cinema da ECA-USP e começamos a trabalhar juntos pouco depois nos nossos primeiros exercícios em vídeo. Num deles, a tarefa era filmar a mesma ação (“homem compra livro”) primeiro com três planos, depois com nove. Já neste primeiro exercício estava presente um elemento de horror, apesar de naquela época o filme ser quase uma brincadeira. Ao longo dos anos, continuamos a trabalhar em colaboração e dirigimos juntos, ainda na USP, O LENÇOL BRANCO, nosso primeiro curta de maior circulação.

Na escritura do roteiro, na pré-produção e no set não dividimos funções: nós dois ficamos próximos de toda a equipe e dos atores. Muitos deles são amigos e colaboradores de longa data, e alguns fazem parte do nosso coletivo, chamado Filmes do Caixote. Já havíamos trabalhado com diversos membros da equipe e do elenco nos curtas, e isso certamente refletiu na dinâmica do set. Os dez anos que passamos juntos na direção afiaram nossa capacidade de entender as vontades um do outro e de colocá-las em prática no filme. É muito bom poder compartilhar as dúvidas assim como os desejos no set. O resultado é que os filmes não nos representam isoladamente, mas são filhos da parceria, e isso é muito gratificante.

Desde que começamos a fazer filmes, tentamos estabelecer um diálogo com o cinema de gênero – horror, fantasia, musical. Temos um amor por estas formas desde a infância e não as vemos exploradas com frequência no cinema brasileiro. Também gostamos das maneiras com que os gêneros são às vezes usados como filtro para discutir e ampliar diversos assuntos, porque o assunto é nosso primeiro interesse, e não a escolha da forma ou do estilo. Em TRABALHAR CANSA, procuramos fazer uso destes elementos para contar uma história de como o trabalho – ou a falta dele – pode afetar profundamente as relações familiares e pessoais. É uma história com toques macabros relacionados à vida de uma família de classe média que vive em São Paulo. Queríamos narrar as consequências de uma súbita inversão de papéis dentro do ambiente doméstico.

Em todos os filmes procuramos encontrar a maneira com que o assunto gera seus próprios aspectos mórbidos, e não simplesmente aplicar convenções do gênero à narrativa – não que não gostemos das convenções. Por exemplo: antes nos perguntamos “precisamos de trilha sonora para contar essa história?”, em vez de concluir que “temos que usar uma trilha macabra”. No curta O LENÇOL BRANCO há uma cena em que uma mulher cuida do corpo do seu bebê morto em uma sala escura. O único som vem de um televisor que exibe um filme infantil. Mais adiante, no mesmo filme, uma grande faca de cozinha aparece rapidamente nas mãos da protagonista. Dura apenas um segundo, mas para nós essa imagem contamina o filme e as ações da personagem como um todo. O tipo de atmosfera que gostamos de trabalhar se relaciona com o horror, mas não é normalmente classificada como “filme de terror”.

Nos interessava ainda narrar uma história que tivesse como um de seus elementos a importância do trabalho nas relações sociais, tendo como pano de fundo a realidade da classe média latino-americana. O fato de a economia brasileira ser tida como uma das que mais crescem no momento se reflete no espírito empreendedor de Helena, em sua súbita decisão de investir no negócio próprio. Por outro lado, a empregada doméstica Paula revela um aspecto do Brasil contemporâneo que demora a mudar: a relação de hierarquia entre Helena e Paula ecoa a herança do período escravista, que acabou mais tarde no Brasil do que em outros países. Ao mesmo tempo, temas como o desemprego, o empreendedorismo e a mulher transformando-se em chefe da casa fazem sentido não só na America Latina, mas também em diversas metrópoles ao redor do mundo.

Nós sentimos que os momentos mais dramáticos do filme deveriam vir das relações de poder entre os personagens, e isso se traduziu em cenas que abordam a relação entre empregado e empregador, mas também em cenas de conflito entre marido e esposa, mãe e filha. Se há de fato uma barreira que separa as relações pessoais das profissionais, ela não é assim tão impermeável. O resultado, esperamos, é um filme que revela uma perturbação constante na vida de uma família de classe média em crise e a atmosfera mórbida que a cerca.

Fonte: Viomundo & Trabalhar Cansa

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