O Racismo Científico – A Falsa Medida do Homem

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A ciência muitas vezes é pintada aos nossos olhos como um campo livre de corrupção social e política, de racismo, machismo e outros males que afetam à sociedade e corroboram para a perpetuação de hierarquias, segregação e exclusão. Muitos têm a ilusão de que a ciência é o campo da verdade e que ela não erra. Erra sim, e erra feio. Este artigo, baseado no livro de Stephen Jay Gould, pretende mostrar alguns equívocos e erros (propositais ou não) que serviram de base para apoiar teorias como a do determinismo biológico – que sempre fortaleceu os impérios.

 “A ciência, uma vez que deve ser executada por seres humanos, é uma atividade de cunho social. Seu progresso se faz por meio do pressentimento, da visão e da intuição. Boa parte das transformações que sofre ao longo do tempo não corresponde a uma aproximação da verdade absoluta, mas antes a uma alteração das circunstâncias culturais, que tanta influência exercem sobre ela. Os fatos não são fragmentos de informação puros e imaculados; a cultura também influencia o que vemos e o modo como vemos. Além disso, as teorias mais criativas com freqüência são visões imaginativas aplicadas aos fatos, e a imaginação também deriva de uma fonte marcadamente cultural.” (Gould, 1991)

Dados, quantificações, estatísticas, são necessários para se chegar a uma resposta científica. No entanto, a forma como esses dados são usados pode servir para uma busca pelo desconhecido ou para “provar” uma teoria ou ideologia pré-concebida. Basta ignorar os dados que não corroborem com a teoria e usar os que corroboram para “provar” o que se pensa. Eu poderia, por exemplo, dizer que a água faz mal à saúde, pois 100% das pessoas que bebem água morrem. É evidente o equívoco no caso da água, mas, com estudos mais detalhados, apontando apenas para o que se “provar”, é possível demonstrar qualquer coisa. O grande ponto sobre a ciência é que ela pode (e deve) indagar a si mesma. Os cientistas podem buscar por pressupostos culturais e reformular as perguntas a partir de premissas diferentes.

O determinismo biológico foi (mas para algumas pessoas continua sendo) uma doutrina que afirmava que o agir humano, suas características intelectuais, etc, eram transmitidas de maneira hereditária. Algo que possivelmente teve participação na origem de estereótipos como “loira burra”, “baiano preguiçoso”, etc.

A craniometria, nos dois últimos séculos, serviu de base para apoiar o determinismo biológico por meio de dados precisos referentes aos crânios de diferentes “raças” de pessoas, onde se tinha a inteligência tida como uma entidade única, mantida no cérebro e determinada pelo seu tamanho e pelos detalhes na formação do crânio.

Durante os últimos cinquenta anos, um punhado de cientistas dedicados à investigação social e biológica conseguiu fazer com que o público culto abrisse mão de alguns dos nossos erros biológicos mais flagrantes. Mas ainda devem existir inúmeros erros desse tipo que ninguém conseguiu até agora deter, devido ao véu com que a cultura ocidental nos envolve. As influências culturais estabeleceram nossas idéias básicas a respeito da mente, do corpo e do universo; elas determinam as perguntas que fazemos, os fatos que buscamos, a interpretação que damos a fatos, e a nossa reação a essas interpretações e conclusões.(p.7)”

Nos séculos XVIII e XIX, não havia dúvida quanto a hierarquização social que devia traçar uma linha de escala intelectual que começava com os brancos europeus, os indígenas abaixo dos brancos e os negros abaixo de todos os outros. Em A Escala Unilinear das Raças Humanas e Seus Parentes Inferiores, de Nott e Gliddon (1868), há comparações feitas em imagens com crânios de negros falsamente alargados para se parecerem  com os de chimpanzés, enquanto os crânios dos brancos são considerados “normais”.

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“[…] Por que incrementar o número dos Filhos da África, transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?” (Benjamin Franklin, 1751, Concerning the Increase of Mankind) O mesmo que em 1785 voltou pra América para lutar pela abolição da escravatura.

Em seu Systema naturae (1758), Caroli Lineu descreveu  que o Homo sapiens afer (o negro africano) é “comandado pelo capricho”, enquanto o Homo sapiens europaeus é “comandado pelos costumes”. As mulheres africanas são “mulheres sem pudor, seios que segregam leite em profusão”.

Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era uma velha senhora que tinha umas tarraxas com que esmagava os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era, todos os dias e a todo momento, insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz de desencorajar até o mais inferior dos animais. Vi como um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um pouco turva… E essas são coisas feitas por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos, que acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! O sangue ferve em nossas veias e nosso coração bate mais forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, fomos e somos culpados desse enorme crime.”(Charles Darwin, A Viagem do Beagle)

Entre as justificativas para a “inferioridade” antes da chegada da teoria da evolução de Darwin, estavam o monogenismo e poligenismo. O monogenismo foi o mais popular, pois era sustentado pela bíblia. Quem ousaria, naquela época,  contrariar a bíblia? O monogenismo partia do princípio de que Adão e Eva foram os primeiros a serem criados à imagem de Deus, e todas as outras raças seriam variações de degenerações do padrão divino, partindo do brando europeu como mais próximo e o negro mais longe. Havia alguns, como Samuel Stanhope Smith, que acreditavam que essa “degeneração” dos negros podia ser revertida se fossem colocados em um ambiente propício, e então se tornariam brancos.  O poligenismo, por sua vez, exclui a figura de Adão e Eva, ou pelo menos a transforma em mera metáfora, com a ideia de várias origens para as diferentes raças.

Louis Agassiz, naturalista suíço, abraçou a poligenia e foi um dos únicos cientistas importantes de sua época a se opor a teoria da evolução de Charles Darwin. Criacionista, ele acreditava que diferentes espécies haviam sido criadas em seus “centros de criação” e, de vez em quando, ocorria alguma migração para que formas híbridas surgissem.

Foi em Filadélfia que tive contato prolongado com os negros. […] Mal posso expressar a dolorosa impressão que experimentei […] Não obstante, senti piedade à vista dessa raça degradada e degenerada, e tive compaixão por seu destino ao pensar que se tratava realmente de homens. Contudo, é-me impossível reprimir a impressão de que eles não são feitos do mesmo sangue que nós. Ao ver suas faces negras com lábios grossos e dentes disformes, a carapinha de suas cabeças, seus joelhos torcidos, suas mãos alongadas, suas grandes unhas curvas, e principalmente a cor lívida da palma de suas mãos. Não pude deixar de cravar meus olhos em seus rostos para se conservarem à distância. […] Que desgraça para a raça branca ter ligado sua existência tão intimamente à dos negros em certos países.” (Trecho de uma carta de Agassiz à sua mãe, 1846)

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O passo seguinte foi a medição da capacidade craniana, feita por Samuel George Morton que, em leito de morte, foi homenageado no The New York Tribune como sendo o cientista americano de maior reputação em todo o mundo. Em sua pesquisa, Morton mediu mais de mil crânios, alcançando sua capacidade em polegadas cúbicas ao revestir os crânios vazios primeiramente com sementes e, como a variação ainda era insatisfatória, passou a usar balas de chumbo. Apesar de ter cometido muitos equívocos em sua pesquisa, Gould acredita que Morton não foi intencional. Do contrário, não publicaria todos os dados de sua pesquisa com a chance de alguém encontrar o erro; e foi o que aconteceu. Sua pesquisa perpetuava a hierarquia brancos>indígenas>negros. A pesquisa de Morton foi meticulosa em alto grau, no entanto, o problema em relação à sua pesquisa foi negligenciar dados fundamentais para se chegar à proporção correta do tamanho cérebro (tido como a raiz da inteligência), tendo como fatores a idade, sexo, altura, do indivíduo em questão.

O tamanho do cérebro está relacionado com o tamanho do corpo a que pertence: as pessoas altas tendem a possuir cérebros maiores que as pequenas. Este fato não implica que as pessoas altas sejam mais inteligentes – assim como o fato de possuírem cérebros maiores que os dos seres humanos não implica que os elefantes sejam mais inteligentes que estes.” (Gould, p.51)

Nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro médio seja igual ao, e muito menos superior, ao branco médio. E, se isto for verdade, é simplesmente inadmissível que, uma vez eliminadas todas as incapacidades do nosso parente prógnato, este possa competir em condições justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitado a competir com êxito com seu rival de cérebro maior e mandíbula menor em um confronto em que as armas já não são dentadas, mas as ideias.” (T. H. Huxley)

Após a publicação da teoria da evolução de Darwin, o criacionismo perdeu todo seu sentido, no entanto, ambos (monogenismo e poligenismo) o usaram como base ainda maior para explicar o seu racismo. Os pologenistas tiveram de admitir a possibilidade de um ancestral comum, mas isto abriu margem para teorias que, a grosso modo, classificavam os brancos como “mais evoluídos” e os negros como “menos evoluídos”.

A ciência tem raízes na interpretação criativa. Os números sugerem, limitam e refutam, mas, por si sós, não especificam o conteúdo das teorias científicas. Estas são construídas sobre a base da interpretação desses números, e os que os interpretam são com frequência aprisionados pela sua própria retórica. Estão convencidos de sua própria objetividade, e são incapazes de discernir o preconceito que os leva a escolher uma das muitas interpretações que seus números admitem.” (Gould, p.66)

 Há ainda uma série infindada de estudos, medições e comparações feitas por cientistas como Morton e Broca, que vão do tamanho do crânio às suas cavidades, de comparações entre tamanho e profundidade de ossos e protuberância do crânio, que não caberiam em um único artigo e requer-se-ia um livro sobre o assunto. Com as proporções corretas e os fatores negligenciados somados, pouco ou nada desses estudos pôde “provar” alguma coisa. Há de se notar que no campo da ciência, as palavras ‘Prova’ e ‘Verdade’ são meramente subjetivas e estão sempre abertas à novas interpretações e questionamentos.

“Em geral, o cérebro é maior nos adultos que nos anciõe, no homem que na mulher, nos homens eminentes, que nos homens medíocres, nas raças superiores que nas inferiores. […] Em igualdade de condições, existe uma notável relação entre o desenvolvimento da inteligência e o volume do cérebro. (Broca, 1861)

“O rosto prognático [projetado para frente], a cor de pele mais ou menos negra, o cabelo crespo e a inferioridade intelectual e social estão frequentemente associados, enquanto a pele mais ou menos branca, o cabelo liso e o rosto ortognático [reto] constituem os atributos normais dos grupos mais elevados na escala humana” (Broca, 1866)

Uma vez que o cérebro feminino tende a ser menor que o masculino, em função dos diversos fatores que influenciam: altura, idade, patologias, etc, uma grande parte dos intelectuais usava destes dados para explicar por que a mulher “tem um nível intelectual inferior”:

“Nas raças mais inteligentes, como é o caso dos parisienses, existe uma grande número de mulheres cujo cérebro se aproxima mais em tamanho ao do gorila que ao do homem, mais desenvolvido. Essa inferioridade é tão óbvia que ninguém pode jamais contestá-la; apenas seu grau é digno de contestação. Todos os psicólogos que estudaram a inteligência feminina, bem como os poetas e os romancistas, hoje reconhecem que as mulheres representam as formas mais inferiores da evolução humana e que estão mais próximas das crianças e selvagens que de um homem adulto. Elas se destacam por sua inconstância, veleidade, ausência de ideias e de lógica, bem como por sua incapacidade de raciocínio. Sem dúvida existem algumas mulheres que se destacam, muito superiores ao homem mediano, mas são tão excepcionais quanto o aparecimento de qualquer monstruosidade, como um gorila com duas cabeças; portanto, podemos deixá-las completamente de lado. […] O dia em que, olvidando as ocupações inferiores que a natureza lhes atribuiu, as mulheres abandonarem o lar e participarem de nossas lutas, uma revolução social terá início, e tudo que sustenta os sagrados laços familiares desaparecerá (Le Bon, 1879).

(Eu fico pensando se ele é um parente distante do Bolsonaro ou  Feliciano…)

Como esta matéria já está por demais extensa, deixarei o tópico sobre criminologia baseada em preconceitos raciais e o QI hereditário para uma próxima matéria. É ao mesmo tempo triste e reconfortante ler sobre estes erros estúpidos cometidos quando se procura uma “prova” para algo já idealizado. O dever da ciência é não parar de buscar respostas, de questionar as próprias respostas e de não parar de perguntar: mas por quê? Erros como estes ocorreram, muito provavelmente, porque se tinha uma “verdade” preestabelecida de que alguns seres humanos são inferiores aos outros. Deste modo, qualquer dado que corrobore com a teoria é aplaudido enquanto os dados que a desmentem são tratados como “exceção”. Que a “revolução social que destrói os sagrados laços familiares” continue.

Referências:

 GOULD, Stephen Jay, A Falsa Medida do Homem, 1991.

Revisado por Bruno Santos de Almeida

Fonte: Causas Perdidas 

 

 

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