‘O sonho da construção de um país mais justo acabou’, diz Iara Pietricovsky

Na semana passada, diversas organizações da sociedade civil estiveram na sede da ONU, em Nova York, apresentando à instituição os esfacelamentos que se vê, em todo o mundo, nas questões voltadas aos direitos humanos e ambientais. O Brasil esteve presente. E é um país que está sendo alvo de preocupação, sobretudo de janeiro para cá, por causa do desmantelamento das instituições, das políticas socioambientais e culturais. No cenário atual, seguramente o país não conseguirá efetivar seus compromissos em relação aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), as metas sugeridas pela ONU para erradicação da pobreza, pela segurança alimentar, por mais saúde, educação, pela redução das desigualdades e outros itens, cujo prazo termina em 2030.

Por  Amelia Gonzalez, G1 

Iara Pietricovsky, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e atualmente presidenta da articulação internacional Forus — Foto: Arquivo Pessoal

Por conta disso, a sociedade civil brasileira está reunida e produzirá um relatório extenso sobre a situação, parte do qual já foi apresentado em Nova York. A antropóloga e cientista política Iara Pietricovsky, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e atualmente presidenta da articulação internacional Forus, que está presente em 69 países nas sete regiões do mundo e reúne 22 mil ONGs, não estava na reunião mas recebeu notícias do encontro. Segundo ela, Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, expressou preocupação especificamente com o Brasil.

Em entrevista, pelo telefone, ela me disse que também está apreensiva e sem esperança: “Se a gente tinha um sonho da construção de um país mais justo social e ambientalmente, este sonho acabou”.

Qual o seu nível de preocupação com a situação do país hoje?

Iara Pietricovsky – Se tínhamos um sonho da construção de um país mais justo social e ambientalmente mais adequado à população desse país, e da posição desse país no mundo, se a gente tinha este sonho, o sonho acabou. Porque essa possibilidade está sendo totalmente destruída por um tipo de visão de mundo que é pequena, restrita, incapaz, não dialoga, não constrói e está voltada para interesses específicos do capital. O governo atual tem obsessão por destruir todo o arcabouço institucional, político, que teria capacidade de enfrentar a desigualdade brasileira, o problema climático, o problema ambiental. O Brasil saiu de um protagonismo em que ele estava disputando narrativas, possibilidades, ainda que com todas as contradições do mundo, para uma condição de submissão ao capital, sem sofisticação nenhuma.

O ministro Paulo Guedes deu recentemente uma palestra a empresários em que ele expõe seu plano de governo e pouco se referiu à pobreza. É um modelo viável?

Iara Pietricovsky – O modelo de mundo do atual governo é os Estados Unidos. Ele está construindo um país para o 1% da população – que talvez sejamos nós – ou para o 0,1%, que são aqueles totalmente ricos e que não precisam do país para fazer a fortuna deles. Este é o problema. O mito do mercado livre já caiu, não dá para pensar assim!

E quanto aos ODS? Você acha que o país tem condições de cumprir as metas até 2030?

Iara Pietricovksy – Não, o Brasil não vai olhar para os ODS, não tem a menor possibilidade. Com o teto de gastos, com o corte que o governo está fazendo em todas as políticas sociais, e por causa da própria opção política que o governo está adotando, não há chance.

Os ODS são contextos do debate internacional que teriam que estar associados a políticas muito fortes, a um financiamento pesado em tecnologia e a um repensar profundo de toda a política de subsídios a combustíveis fósseis, uma ampliação de financiamento sobre energia limpa, que vem aumentando mas com muita lentidão em relação àquilo que é necessário, do ponto de vista de você produzir de fato uma redução de gases do efeito estufa, de você realmente partir para processos produtivos de baixo carbono.

Muitas dessas medidas já vinham sendo desenhadas mas com muita dificuldade exatamente porque contrariavam interesses do capital, tanto do agronegócio quanto do capital financeiro. Com o governo Bolsonaro se desestruturou toda uma construção política de execução dessas transformações para voltarmos a viver um tempo passado, em que o capital possa ter capacidade de acumular mais.

Este não é um fenômeno internacional? O que deu errado para a realização do sonho de se ter um mundo mais igualitário, com governos que respeitam os direitos humanos e o meio ambiente?

Iara Pietricovksy – Sim, o Brasil não está sozinho. É um fenômeno de construção de uma nova mentalidade global. Acho que as esquerdas erraram.

A ONU também erra?

Iara Pietricovsky – Erra muito. A ONU ainda é uma instituição importante porque defende o marco civilizatório que a gente tem no mundo ocidental, mas foi capturada pelas grandes corporações. No início do ano 2000, quando a ONU chama para os Objetivos do Milênio (ODM) e ali ela se associa ao Global Compact, (associação de 28 empresas multinacionais) ela perde grande parte de sua autonomia e da sua capacidade de ter autoridade naquilo que ela formula e faz.

As empresas se apoderaram do movimento de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) como estratégia de marketing. Mas elas fazem o que o sistema exige delas, não?

Iara Pietricovsky – Sim, a RSC virou uma ação paliativa porque, se com uma mão elas fazem algo pelo socioambiental, com a outra mão elas destroem. Desde 1994 eu acompanho a reunião do Banco Mundial e do Fundo Monetário. Naquela época eles nem queriam ver organizações da sociedade civil por perto, mas hoje temos até um espaço, podemos participar. O Banco incorporou a agenda dos ODS integralmente no seu plano, mas quando se pega o portfólio dele, percebe-se que está financiando todas as empresas de mineração, investe pesadamente em programas de combustível fóssil.

E o que as empresas de petróleo estão fazendo, por exemplo? Elas estão buscando até a última gota de petróleo do mundo, como forma de acumulação. E parte dessa acumulação está sendo aplicada na transferência tecnológica de energia limpa. Daqui a dez anos elas vão jogar fora tudo, quem se apoiou nisso vai morrer, e elas vão estar com a tecnologia para fazer o que elas têm que fazer. É isto. Tenho um amigo italiano que me falava, nos anos 80: nós vamos viver a última onda de acumulação capitalista é através da natureza.

Como assim?
Iara Pietricovsky – As grandes corporações estão agora super confortáveis porque elas entraram nos espaços dos estados nacionais. Estes estão capturados por essas corporações nos espaços multilaterais e operam na construção dessas agendas. A agenda ODS é uma agenda palatável ao sistema financeiro mundial. Ela tem um caráter humano porque teve que incorporar uma agenda de direitos depois da fase em que se fazia crítica à como os direitos humanos nasceram (como uma forma de colonização cultural no mundo). Mas as outras fases da ideia de construção do direito humano, onde se define o que é dignidade humana, isto significa uma revolução no modelo produtivo, na compreensão de alteridade. Num mundo estruturado e hierarquizado do jeito que ele está, isso atrapalha.

Sendo assim, a sociedade civil é que precisa se mover, se unir para tentar promover mudanças?

Iara Pietricovsky – Sim. E este processo de criminalização das organizações que tentam disputar narrativas trazendo essa ideia da humanização dos processos está acontecendo em todas as partes do mundo. O que sobra? Tem uma forma mais tradicional, que é este modelo no qual nós nos organizamos por ONGs progressistas, de defesa de direitos, da democracia. E, do outro lado, as organizações espontâneas mais horizontalizadas. Essa menina sueca de 16 anos, a Greta Thunberg, está produzindo maravilhosamente, ela agora está chamando para uma manifestação mundial a favor do clima, que acho bárbara.

Aqui no nosso campo brasileiro, a Marielle é um ícone disso. Então eu acho que é o que pode existir hoje: manifestações que não sejam tomadas pelas fake news, que não sejam manipuladas pelo poder, que não sejam compradas. Ninguém detém a verdade, obviamente. Mas, conseguir se manifestar em prol de afirmação de uma narrativa de campo de direito, de inclusão, de respeito à diversidade, e ainda assim acreditar que você pode compor um planeta sustentável, é esta narrativa contra aquela que diz o seguinte: vocês são a escória do mundo, vocês não contam, o que conta é a nossa capacidade de produzir, de acumular, e dane-se o mundo, dane-se esta água, dane-se o que você come, põe agrotóxico, comam veneno, mas vamos vender. E estão errados, porque não vão vender.

Esta é outra questão. Não se está mais em 1972, quando o Brasil, na Conferência de Estocolmo, convidou os países a investirem aqui porque tínhamos natureza para dar e vender. Agora há uma pressão da comunidade internacional em prol da preservação do meio ambiente…

Iara Pietricovsky – Isto mesmo. Podem perder com esta atitude. Eu viajo muito para fora e não aguento mais as pessoas me perguntando o que está acontecendo no Brasil.

O que está acontecendo no Brasil?

Iara Pietricovsky – Na verdade, o Brasil sempre teve isso. Nos últimos trinta, trinta e cinco anos, a partir da abertura política, sendo petista ou não sendo petista, o campo democrático no Brasil teve a chance do sonho. E as forças políticas que jogaram aí, por um tempo foram bem sucedidas, mas não aguentaram o peso de um país que é arcaico, que é patrimonialista, que é escravocrata. Esquecemos, por exemplo, que na ditadura tivemos a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Nós nos esquecemos que uma base da elite brasileira é contra a história de construir uma base social.

O escritor e sociólogo Jessé Souza reflete sobre isso…

Iara Pietricovsky – Sim, gosto muito das reflexões dele. E ultimamente ele não tem querido nem sofisticar a linguagem. O que, na verdade, estamos vivendo hoje no Brasil, é um autoritarismo autorizado pelas eleições.

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