O Verão da Liberdade, preconceitos estruturais e a importância de aceitar críticas

Fui apresentada ao Movimento de Direitos Civis dos Estados Unidos por um curso online. Em uma das aulas, abordou-se o Verão da Liberdade. Em 1964, durante os meses de verão do hemisfério norte, houve um esforço maciço por parte de movimentos sociais organizados em registrar a população negra para votar. O voto nos Estados Unidos não é obrigatório, e mesmo que a discriminação do acesso aos direitos eleitorais seja proibida desde 14ª emenda, de 1868, diversos dispositivos foram criados para impedir que a população negra usufrua deste direito. Em 1963, menos de 7% da população negra do Mississippi que formalmente teria direito a votar não estava apta a exercê-lo pela falta de registro, o menor percentual dentro os estados, por isso foi escolhido para para sediar este projeto.

 

Deste esforço participaram não só organizações locais ou nacionais de liderança negra, mas também estudantes brancos vindo dos estados do norte, entre outros voluntários de diversas associações. Uma dessas voluntárias era Betty Garman Robinson, nascida em uma família republicana em Nova York e estudante de Ciência Política em Berkeley. Uma entrevista (desculpem, em inglês) em que ela conta uma pouco da sua experiência me inspirarou a escrever este texto.

Primeiro, o grupo dela passou por um treinamento de duas semanas em que aprenderam sobre o contexto político, entenderem o trabalho que iriam realizar, e como as relações raciais se davam no Mississippi. O que de acordo com ela, já gerou os primeiros incômodos: nem todos se sentiram confortáveis com as questões apresentadas.

Depois, conta que ficou hospedada na casa de uma família modesta durante sua permanência no Mississipi. Seus anfitriões emprestaram o único quarto e o único ventilador da casa para a hóspede, e apertavam-se para dormir, com calor, na sala de estar. Olhando pra trás, ela se dava conta de que não tinha demonstrado tanto agradecimento pela acolhida como mereciam, porque estava envolvida demais com o trabalho. E a entrevista fica mais interessante quando ela é perguntada se acredita que essa falta de interação com seus anfitriões não foi culpa do racismo.

Importante fazer uma pausa. Por mais que o nome “Verão da Liberdade” pareça muito divertido, os voluntários sabiam que não estavam indo a passeio. A Ku Klux Klan assassinou pessoas (inclusive militantes brancos, e claro, o FBI só se preocupou quando as vítimas não eram as de sempre). Mais de 80 pessoas foram espancadas. Os voluntários trabalhavam em um ambiente de perigo e hostilidade constantes. Não acho errado generalizar e dizer que os voluntários eram pessoas que não faziam caridade, mas que acreditavam que uma sociedade justa não poderia excluir a população negra.

Como dizer que essas pessoas eram racistas, então? Não seria ofensivo e injusto? Mas Betty não se choca. Ela concorda, diz que não tinha pensado no assunto. Não, acreditar em uma sociedade mais justa não era o suficiente para socializar com pessoas em uma condição tão diferentes daquelas com que ela habitualmente convivia. Essa dificuldade estava posta, sim, não há como negá-la.

E assim ficamos sabendo que estes conflitos aconteciam todo o tempo. A presença de pessoas brancas em posições de liderança era constantemente questionada por aqueles que queriam formar lideranças políticas negras. Os brancos escolarizados tomavam decisões de maneira centralizada porque, como se sabe, consultas públicas tomam muito tempo. Ignoravam que o processo era tão ou mais importante que o resultado. Além das tensões raciais, havia as tensões de classe intrarraciais (entre negros pobres e os de classe média), e claro, as de gênero também, ainda que Betty não se desse muito conta disso, como contou.

Uma das dificuldades, segundo ela, era entender, por exemplo, que o racismo é estrutural, as pessoas, por vezes, seriam racistas, ainda que inconscientemente. E que não era obrigação dos negros serem condescentes com racismo só porque vinha de militantes engajados em sua causa. As pessoas ofendidas poderiam reagir com raiva, era legítimo, mas como administrar essa raiva dentro de um contexto em que a colaboração mútua era necessária?

A entrevista me impressionou pela franqueza com que este assunto é abordado, pois frequentemente pessoas supostamente bem intencionadas se ofendem quando seus discursos ou atitudes preconceituosos são apontados. Como se militância fosse um atestado automático de tolerância e empatia. E se acreditar que os negros não eram inferiores, mas tão sujeitos de direitos quanto qualquer outra pessoa, não fazia com que Betty e seus colegas superassem o racismo, o mesmo pode-se dizer de qualquer relação que evoque conflitos estruturais. Se nem ser mulher me isenta do machismo estrutural, aceito que, infelizmente, vou reproduzir racismo, homofobia, transfobia, capacitismo ou outros tipos de comportamento discriminatórios na minha vida e na minha militância, mesmo tentando me policiar para que essas sejam exceções. Este é um blog coletivo, não posso responder por todas as autoras. Mas arrisco dizer que elas não se ofenderão com esta afirmação: apesar dos nossos esforços, este espaço tampouco está imune a reproduzir discursos que afirmam, mesmo de maneira velada, a mesma violência combatida aqui.

Não há ficha corrida de serviços prestados, por mais relevantes que sejam a uma causa, que isente ninguém de crítica – ou, ao menos, não deveria haver. Mas não é raro testemunhar históricos pessoais sendo usados como salvo-condutos para declarações infelizes, por exemplo. É o argumento “eu até tenho amigos gays” em sua versão elaborada, que devolve críticas com a exigência reconhecimento e mérito do interlocutor. Há a versão intersercional: não sou racista, porque sou de esquerda, não sou transfóbico, porque milito a favor do casamento gay, entre outras combinações curiosas.

Estrategicamente, e quando a interlocução nos interessa, é mais efetivo apontar atitudes do que pessoas. Dizer que uma piada é homofóbica desqualifica a piada, não quem a contou. Quando somos nós as apontadas, a reflexão é uma reação mais útil do que a defensiva. Se reproduzimos um discurso ofensivo sem nos darmos conta é porque, provavelmente, desconhecemos alguma aspecto da condição de quem foi ofendida. Ainda que ninguém tenha obrigação de nos educar, ouvir a queixa de quem se ofendeu pode nos ensinar muito.

Não há espaço, pessoa, discurso ou movimento isento de falhas. Pessoas e associações ligadas ao Movimento de Direitos Civis por vezes reproduziram em seus processos as mesmas opressões de classe, gênero e até de raça que se empenhavam por combater. As conquistas, que não foram poucas, vieram apesar dessas incoerências, não por conta delas, e as críticas não desmerecem sua importância. Se mesmo lutas inspiradoras como essa não estavam isentas de reproduzir opressões entre seus membros, não acredito que outras estejam. O desafio é sempre, pelo diálogo, construirmos coerência entre o fim – uma realidade mais justa e inclusiva – e os meios – processos e discursos que não atropelem gente pelo caminho.

Texto de Iara Paiva.

 

Fonte: Blogueiras Feministas

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