Quando recebi o convite para publicar em Celina, fiquei em choque. Primeiro porque não sou jornalista e nunca me imaginei escrevendo para um jornal. Segundo porque sou leitora da editoria e não imaginava que este fosse um espaço possível para minha escrita habitar.
Nesse primeiro momento, não sabia como me apresentar. Quando abri o documento em branco para contar quem eu sou, não fazia a menor ideia do que ia dizer, mas agora sei. Quero que você aí do outro lado saiba de mim através da minha relação com a escrita.
Um dos meus primeiros brinquedos foi um livro de banho para bebês. Daqueles feitos de borracha. Meus pais não completaram o ensino médio, não tinham o hábito de ler muito mas minha mãe sempre me encheu de referências de leitura. Nunca se negou a me presentear com livros e gibis, nenhum livro era caro para ela. Tive coletâneas de histórias, almanaques, revistas, enciclopédias. Sou uma mulher negra fruto de uma família negra e as pessoas que vieram antes de mim não tiveram um acesso tão facilitado à leitura e à educação, assim como a maioria da população negra no Brasil.
Como demonstram os dados educacionais organizados pelo movimento Todos Pela Educação, as desigualdades são ainda hoje reforçadas no sistema educacional. A taxa de analfabetismo é 11,2% entre os pretos; 11,1% entre os pardos; e, 5% entre os brancos. Além do índice de analfabetismo, há maior evasão escolar entre jovens negros: 4 em cada dez não concluem o ensino médio, segundo o IBGE.
São muitos os fatores que afastam jovens negros das salas de aula, mas posso dizer que fui privilegiada. Estudei a maior parte da minha vida no sistema privado de ensino, e a leitura, como eu disse, fez parte da minha vida desde o início. Também tive o privilégio de ser criada por uma mãe artista, o que me garantiu acesso precoce à cultura e a referências de pessoas negras que exerciam a arte como ofício. Nelson Xavier, Antônio Pitanga, Elisa Lucinda, Chica Xavier, Taís Araújo eram pessoas que circulavam como amigas em nosso círculo familiar. Esta convivência me deu muito cedo um senso de que as vidas de pessoas negras não se resumiam às violências do racismo. Devo tudo aos esforços de minha mãe, Solange Couto, para garantir uma educação de qualidade na minha infância.
Costumo dizer que a leitura me salvou e me protegeu dos demais atravessamentos negativos que o racismo me causou. Em momentos em que vivi a solidão, traumas e dores da realidade que mulheres negras atravessam ao longo da vida, as histórias eram meu refúgio, um verdadeiro alívio. E foi buscando entender melhor essas dores que comecei a escrever. Meus primeiros escritos foram diários e em seguida me arrisquei a reescrever os diálogos dos textos de capítulos de novelas que eram usados como rascunho na minha casa. Após gravar as cenas, minha mãe trazia para casa os papéis que iriam para o lixo já sem utilidade para se tornarem papéis para anotações diversas. Então o verso em branco se tornava meu terreno fértil de (re)inventar e imaginar a ficção ao meu modo, pelo meu ponto de vista.
Depois de adulta, comecei a timidamente compartilhar meus escritos e pensamentos com as pessoas e frequentemente ouvia que os sentidos que produzo através da minha escrita as afetaram em suas trajetórias e ajudaram a curar e compreender dores invisíveis – mas pungentes. Posso dizer que sou aprendiz de Conceição Evaristo na arte da “escrevivência”, seguidora de Carolina Maria de Jesus utilizando papéis do lixo para reescrever minha história e filha de Elisa Lucinda na busca pela “inteligência da semelhança”. A escrita tem se tornado neste momento da minha vida uma das formas mais importantes de expressão de quem eu sou e de realização do meu propósito de vida. Sou uma pessoa negra que se movimenta para a criação de imagens de futuro que não encarcerem nossas narrativas às grades do racismo e de suas estruturas.
Minha escrita não caminha sozinha, mas se apoia nos ombros de todas as grandes mulheres negras que caminharam – e escreveram – antes de mim. Meu nome é Morena Mariah e eu escrevo no verso em branco da história que nos contaram sobre pessoas negras. Muito prazer.
* Morena Mariah é pesquisadora, podcaster e criadora da plataforma de educação Afrofuturo.
*Foto em destaque VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL