Obama lá, e aqui?!

Foto: EVAN VUCCI BLOOMBERG

E no Brasil, quando vamos ter um(a) presidente(a) da República negro(a)? A pergunta procede porque se hoje há um consenso nas declarações públicas, de cima a baixo, a começar de Lula, festejando a vitória de Barack Obama lá no norte, quantas gerações ainda o Brasil aguardará para sentir o mesmo orgulho visto mundo afora pelo exemplo dado pela vigorosa democracia estadunidense? Quantas décadas ainda serão necessárias para que se geste aqui um(a) candidato(a) com similares back-ground e antecedentes étnicos, para o(a) qual sejam oportunizadas – como os Estados Unidos agora enfatiza – condições iguaise equitativas de disputa política pelo poder real?

É muito gostoso, confortável até, palpitar sobre a vida e a sociedade alheias. Mas, e a nossa? Os Estados Unidos tem uma minoria negra que em sua história em média nunca ultrapassou os 13% no conjunto da população. Óbvio que não foi essa minoria, de cujo percentual deve ser subtraído um expressivo número de abstêmios e contrários, tão somente ela a responsável pela consagração de Obama. Ressalte-se, ademais, que ao se definir “negro” pelos critérios ali adotados estamos falando do clássico conceito de Oracy Nogueira (Tanto Preto Quanto Branco, 1954), isto é, considera-se negro quem tem antepassado afrodescendente até a quinta geração, independentemente do seu fenótipo. Por esse viés, entre aqueles 13% se inclui inclusive gente que em terra brasilis seria considerada loira. Tá bom: morena, cravo-e-canela. Aqui se é tudo, menos negro, como demonstrou o recenceamento do IBGE na década de 1980, quando a tabulação dos resultados encontrou mais de 120 auto-definições para os entrevistados que não poderam se declarar simplesmente brancos..

Nessas plagas, onde os afrodescendentes em toda a história senão expressiva maioria populacional sempre beiraram pelo menos os 40%, o critério de definição são os caracteres físicos, aparentes, como argumentou Nogueira. Na medida em que a sociedade estadunidense, após o fim da escravidão com a sanguinolenta guerra civil de 1861-65 (há um ensaio de Edmund Wilson sobre o tema, Sangreira Patriótica, 1962), construiu nas tensas relações raciais o princípio dogmático “separates but equals” (separados, mas iguais), os negros vítimas de violenta segregação e da lei de Lynch foram como “forçados” a se organizar em auto-defesa, minoria que sempre foram. Essa organização, se problemática e faccionada, no geral resultou em ganhos. Que se aceleraram a partir de 1954, depois de a Suprema Corte declarar inconstitucional a doutrina “separados, mas iguais”. Esse foi o importante fato jurídico inaugural de impulso ao amplo movimento de “direitos civis”. O pastor Martin Luther King Jr. e o presidente John Fitzgerald Kennedy, ambos depois assassinados por fanáticos radicais, são os emblemas desse movimento.

O que surpreende e deixa o mundo encantado com a eleição de Obama é justamente a percepção geral de quanto nos Estados Unidos a “raça” é e sempre foi fator de dissenso, de tensões extremas. A guerra civil ou de secessão que quase destrói o país, resultando na morte de 2% da população (em números de 2008 seriam quase 6 milhões de pessoas!) poderia ser evitada se Abraham Lincoln, presidente de 1861 a 1865 (também assassinado), não se empenhasse em acabar com a escravidão negra, estratégica opção econômica. De meados da década de 1950, por mais de 15 anos ininterruptos os EUA foram internamente engolfados por uma sucessão de batalhas, concomitantemente jurídicas, legais e civilmente públicas, com mais tumultos de rua e mais assassinatos, a exemplo de Malcolm-X e do senador Bob Kennedy, provável sucessor do irmão ex-presidente. Tais conflitos, registrados na imprensa do mundo todo, num momento histórico externamente delicado das guerras fria e do Vietnã, levaram o presidente Lindon Johnson (1963-1969) ordenar em 1967 um amplo diagnóstico, feito pela “Comissão Kerner”, por ele nomeada. Sete meses depois, o veredito que impactou a mentalidade nacionalista de suas elites: “Nossa nação está caminhando para dividir-se em duas sociedades, uma negra, outra branca – separadas e desiguais”.

A ascensão de Obama comprova que as instituições políticas, sociais e econômicas daquele país de contrastes, por sua elite de mando souberam ler e compreender o alerta da “Comissão Kerner”. Tomaram a si, com a implementação de um conjunto de políticas de ação afirmativa, a responsabilidade de evitar o que predizia tão chocante diagnóstico. A decisão de evitar o pior não foi fruto de iniciativas restritas aos sucessivos governos a partir de Kennedy, Johnson e Richard Nixon
(1969-1974), este o que agiu para a efetiva implantação de políticas para as minorias. Oferecer, principalmente aos negros, meios que oportunizavam a igualdade de condições para competir em espaços antes restritos a não-negros, esta é a ciência que está na base da vitória eleitoral que muda para sempre a história do mundo moderno, pelo peso e pela importâcia dos Estados Unidos.

Muito teriam a aprender as elites brasileiras de mando, se não apenas se regozijassem pelo exemplo dado pela democracia americana, há muito louvada desde Tocqueville. Aos que nos últimos tempos por aqui excomungaram as ações afirmativas focadas aos negros, apelando para um suposto (mas desinformado) fracasso de tais politicas naquele país (o ataque começou com a eleição em 1981 de Ronald Reagan), eis aí a prova inconteste.

É mister que para os recalcitrantes contrários a qualquer tipo de avanço que resulte na ascensão de negro(a)s brasileiro(a)s a postos de relevância política ou econômica, sem nisso admitir as sutilezas do racismo pátrio na exclusão daqueles não apenas dos quadros partidários importantes, mas da direção de empresas cotadas na Bolsa ou mesmo das redações dos jornais, restará sempre o consolo de que em nosso país o povo, inclusive a patuléia negra, é pacífico. Que se matem nos guetos e sejam exterminados nas favelas. Em nossa sociedade, de homens cordiais, nunca houve ou haverá algo minimamente remoto à guerra civil ou às batalhas campais daquele país curioso, mas distante, lá de cima do norte. Afinal, deus é brasileiro.

* Fernando Conceição, jornalista, é pesquisador-visitante em estágio pós-doutoral na Freie Universität Berlin (Alemanha). É autor, entre outros, de “Mídia e Etnicidades no Brasil e nos Estados Unidos: Entre Zumbi dos Palmares e Malcolm X, Entre Folha de S. Paulo e The New York Times” (2005). Foi visiting scholar na New York Univesity e na University of California. (1998-1999) e bolsista Fulbright (1994) nos Estados Unidos.

 

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