Entre 2019 e 2023, foi registrado o nascimento de 1.765 bebês de meninas vítimas de violência em São Paulo (SP). É o que revela o Observatório Criança Não É Mãe, que traz dados sobre a gestação na infância e na adolescência na capital paulista com especificações relacionadas à raça/cor, faixa etária, escolaridade, entre outros recortes.
Lançado no dia 13 de outubro, a iniciativa foi desenvolvida pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e pelo Projeto Vivas, em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos do Município de São Paulo. “A proposta busca subsidiar políticas públicas e ações de enfrentamento mais contextualizadas, capazes de responder às especificidades do território e das crianças e adolescentes sobreviventes de violência sexual ou gestantes”, explica Rebeca Mendes, advogada e diretora do Projeto Vivas.
Os dados reunidos utilizam o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) como fonte principal. O banco de dados registra doenças e agravos de notificação compulsória. Além disso, também foi utilizado o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), responsável pelo registro de nascimentos e o Sistema de Informações Hospitalares (SIH), que reúne dados sobre internações no Sistema Único de Saúde (SUS).
“A partir da análise desses dados, o Observatório identifica pontos frágeis que demandam maior atenção e contribui para o aprimoramento e a execução de políticas públicas que garantem direitos sexuais e reprodutivos, bem como para a criação de novas políticas que atendam às necessidades das pessoas usuárias dos serviços de saúde, considerando suas realidades específicas”, pontua Ellen Vieira, obstetriz e integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
A obstetriz ressalta que os dados de São Paulo refletem a realidade brasileira: em regiões periféricas, onde há índices de maior vulnerabilidade social e assistencial, há maior número de meninas de 10 a 14 anos que já viveram uma ou mais gestações e partos. A maioria delas é negra e possui defasagem escolar.
As pesquisadoras também notaram que, apesar da gestação na infância e na adolescência ser considerada de alto risco, não há um número de consultas pré-natal adequadas para essa classificação de risco.
Diante disso, Ellen Vieira afirma que “o Observatório conclui e recomenda que ações de proteção e prevenção devem ser orientadas pela interseccionalidade e pela integração entre os serviços de saúde, educação e assistência social, garantindo respostas mais efetivas e sensíveis às diversas necessidades da população”.
Olhar interseccional para gravidez na infância e adolescência
Entre 2019 e 2023, meninas de 13 e 14 anos vítimas de violência deram à luz a 1.730 nascidos vivos. A grande maioria dessas meninas é negra: 1.009 pardas e 138 pretas. Esse dado reforça a necessidade de olhar interseccional para esse cenário.
As meninas negras também foram as mais internadas por causas obstétricas. Foram 975 casos (44,3%) de internação de meninas pardas, seguidas por meninas brancas, com 723 casos (32,8%), e 192 internações de meninas pretas (8,7%). Além disso, há 312 registros (14,2%) em que a raça/cor foi marcada como desconhecida.
Maria Sylvia, advogada e coordenadora da área de Gênero, Raça e Equidade de Geledés, destaca que os dados apresentam limitações, como falta de qualificação das informações, descumprimento das normativas sobre o registro da variável raça/cor e negligência estatal na produção e monitoramento dessas informações.
“Esse dado evidencia o entrecruzamento das desigualdades raciais e de gênero, além de apontar para a persistência de um padrão histórico de vulnerabilização das infâncias negras no Brasil”, diz Maria Sylvia.
A advogada destaca que Geledés tem enfatizado para o Estado brasieliro a urgência de uma coleta qualificada de dados, com formulários padronizados nos órgãos oficiais, obrigatoriedade de inclusão do quesito raça/cor e o compromisso de que todos os municípios brasileiros forneçam essas informações de maneira completa e sistemática.
“A qualificação e a desagregação desses dados são condições indispensáveis para que o Estado possa planejar, implementar e monitorar políticas públicas eficazes e baseadas em evidências. No contexto específico da violência que atinge crianças e adolescentes — especialmente a violência sexual e suas consequências, como a gravidez precoce —, a ausência de informações detalhadas e confiáveis compromete a capacidade de formular respostas institucionais que enfrentam, de forma estruturante e interseccional, as desigualdades que produzem essas violações”, explica.
Rebeca Mendes também ressalta a necessidade de uma análise seccionada desse cenário, de modo a evidenciar as desigualdades estruturais que atravessam a experiência da gestação na infância e na adolescência. “Ao tornar visíveis essas desigualdades, é possível orientar políticas públicas mais justas e efetivas, que reconheçam as condições concretas de vida das meninas e enfrentem as causas estruturais da violação de seus direitos”, afirma.
Criança não é mãe
Num país em que cerca de 300 mil crianças e adolescentes dão à luz anualmente, conforme revela o Observatório Criança Não É Mãe, o enfrentamento à violência contra essas meninas é urgente e de responsabilidade coletiva.
No entanto, existem ações que vão na contramão desse objetivo. “Observa-se com preocupação o avanço de iniciativas legislativas que, em vez de proteger, ameaçam direitos fundamentais já conquistados. Em diferentes esferas do poder público, projetos de lei têm sido propostos com base em desinformação e sem respaldo científico, revelando um retrocesso nas políticas de proteção integral”, afirma Maria Sylvia.
Um exemplo disso é a Proposta de Decreto Legislativo (PDL) nº 3/2025, em tramitação no Congresso Nacional, que pretende suspender uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que assegura direitos a meninas vítimas de violência sexual, entre eles o acesso ao aborto legal.
“Tais iniciativas ignoram um princípio ético e jurídico básico: criança não é mãe, criança não deve ser mãe. Defender esse princípio é reafirmar o compromisso com a proteção integral da infância e com a dignidade humana, pilares de um Estado verdadeiramente democrático e comprometido com os direitos humanos”, afirma Maria Sylvia.