Ódio no Brasil: Estamos nos armando, mas a guerra ainda não começou

Políticos, religiosos e parte da mídia inflamam a população, desumanizando o adversário e transformando o jogo democrático em uma luta do bem contra o mal. Quando um grupo de pessoas passa a desejar e a festejar a morte daqueles que foram desumanizados, os políticos, os religiosos e essa parte da mídia dizem que não têm nada a ver com isso.

Foto: Flávio Florido

Por Leonardo Sakamoto Do

Líderes de certos movimentos travam guerras na internet, dizendo que a esquerda é a razão de toda a corrupção e dor que há no mundo. Quando um punhado de ignorantes resolve espancar quem ousa vestir roupas vermelhas ou quando médicos passam a divulgar e ridicularizar, nas redes sociais, prontuários médicos sigilosos de pacientes de esquerda, os líderes desses movimentos dizem que não têm nada a ver com isso.

Articulistas afirmam que a direita merece ser exterminada pelo que prega. Quando um grupo de malucos passa a pedir o assassinato de juízes e políticos conservadores, esses articulistas dizem que não têm nada a ver com isso.

Certos humoristas elegem apenas iletrados, negros, prostitutas, gays, nordestinos, travestis, população de rua como alvos de suas piadas, ignorando brancos, ricos, grandes empresários. Quando a população reproduz essas piadas no dia a dia, humilhando colegas no trabalho e na escola, esses humoristas dizem que não têm nada a ver com isso.

Campanhas publicitárias transformam mulheres em objetos sexuais, instrumentos de limpeza ou vasilhames de cerveja. Quando homens tratam mulheres como coisas descartáveis, os publicitários e profissionais de mídia dizem que não têm nada a ver com isso.

Grupos sociais e parlamentares defendem que há uma doutrinação comunista nas escolas, militando contra a pluralidade de pensamento e chegando, no limite, a propor que alguns livros sejam vetados, jogados no lixo ou queimados. Quando jovens ignoram a História e cometem os mesmos crimes contra minorias de 80 anos atrás, esses grupos sociais e parlamentares dizem que não têm nada a ver com isso.

Lideranças de taxistas inflamam a categoria contra motoristas de Uber. Quando um grupo espanca um motorista, essas lideranças dizem que não têm nada a ver com isso.

Figuras públicas da TV inflamam a população contra o que chamam de degradação da civilização e das famílias de bem. Quando um grupo resolve amarrar alguém em um poste e linchar até a morte ou quando prefeituras mandam arrancar página de livros didáticos que versam sobre o direito de não ser humilhada por ser mulher, essas figuras públicas dizem que não têm nada a ver com isso.

Parlamentares dizem que as torturas e os assassinatos cometidos pela última ditadura civil-militar brasileira foram necessários para que o país não se tornasse uma grande Cuba. Daí quando a tortura segue sendo utilizada como método de investigação policial e o Estado usa métodos que nem a ditadura cubana usaria, esses políticos dizem que não têm nada a ver com isso.

Certas famílias inflamam seus filhos contra jovens negros e pobres da periferia e pessoas em situação de rua, dizendo que são uma ameaça à vida nas grandes cidades e não valem nada. Quando um grupo resolve despejar preconceito ou dar pauladas e por fogo nessas pessoas, as famílias dizem que não têm nada a ver com isso.

Pastores e padres de certas igrejas inflamam seus fieis contra aquilo que consideram um desrespeito às leis de seu deus. Quando um grupo espanca um gay, uma lésbica ou uma travesti, esses pastores e padres dizem que não têm nada a ver com isso.

Alguns jornalistas, progressistas e conservadores, inflamam seus leitores, ouvintes, telespectadores, repassando conteúdo violento, sem checar e de forma acrítica. Quando um grupo passa a assediar, de forma injusta, pessoas ou instituições com base nesse conteúdo, os jornalistas dizem que não têm nada a ver com isso.

Políticos inflamam seus eleitores contra jornalistas, progressistas e conservadores, por eles estarem divulgando fatos reais e não as opiniões que convém a esses políticos. Quando jornalistas passam a apanhar nas ruas porque cismam em não concordar que emoções superam provas, esses políticos dizem que não têm nada a ver com isso.

No Brasil, ninguém reconhece que fomenta ódio contra outros seres humanos.

Porque, no Brasil, muitos não reconhecem como ser humano quem é diferente deles.

Gritar isso para a nossa bolha nas redes sociais não resolve. Ou você respira fundo e conversa com quem pensa de outra forma, promovendo a empatia onde ela não existe e concedendo – nessa conversa – o mesmo tratamento que confere aos seus amigos, ou continuaremos vendo exércitos se armarem de cada lado para uma guerra em que apenas as baratas sobreviverão.

E não se enganem, ela ainda nem começou.

+ sobre o tema

Liderança deve ir além das desgastadas divisões da esquerda e da direita

Muitos líderes preferem o caminho da enganação ao árduo...

Desigualdade salarial: mulheres ganham 11% a menos no DF, mesmo com lei de equidade em vigor

A desigualdade salarial entre homens e mulheres no Distrito...

No Brasil, 4,5 milhões de crianças precisam de uma vaga em creche

Em todo o país, 4,5 milhões de crianças de...

Nordeste e Norte elegeram mais prefeitas mulheres nos últimos 20 anos

Mossoró, município de 265 mil habitantes no interior do Rio...

para lembrar

Viagens e discursos de Francisco no tour pela América do Sul

A missão do papa Francisco é manter a teocracia...

Raça e gênero moldam campanha presidencial nos Estados Unidos

Fundada por um imigrante turco em Nova York, a...

Em meio à perda de apoio, Obama lança ofensiva por voto latino

Com o apoio da população latina em queda, o...

Economistas lançam manifesto pelo desenvolvimento e inclusão social

Texto critica difusão da ideia de que austeridade fiscal...

Candidatos ignoram combate ao racismo em debates em SP, 2ª capital mais desigual do país

As políticas de combate ao racismo foram praticamente ignoradas até agora nos debates dos candidatos à Prefeitura de São Paulo. Os encontros ficaram marcados por trocas de acusações,...

Direita invisibiliza mulheres, negros e LGBTI+ em seus planos de governo, dizem especialistas

Violências, falta de políticas públicas, dificuldade para acessar direitos e preconceitos que aparecem de diversas formas. Mulheres, pessoas negras e a população LGBTI+ enfrentam...

Monitoramento mostra que 99% dos incêndios são por ação humana

Apenas uma parte ínfima dos incêndios florestais que se proliferam pelo país é iniciada por causas naturais. A constatação é da doutora em geociências...
-+=