Os dessemelhantes por Washington Araújo

Os dessemelhantes guardam alguma similitude entre si: são originários daquela zona que, por mais que progrida economicamente, continuará segregada ao eterno “terceiro mundo”, que é essa criação política (e monstruosa) feita por aqueles luminares do pensamento que ainda se autoproclamam ornamentos centrais da civilização humana.

por Washington Araújo

No século passado as ruas eram ocupadas por massas humanas lutando pelo direito humano mais comezinho: o direito à liberdade. E esse direito abarcava o direito de opinião, o direito abraçar uma crença, o direito de professar uma ideologia. Enfim, esse direito cada vez mais difícil de ser conquistado: o direito de ser humano.

As pessoas ocupavam as avenidas e praças para protestar contra coisas pontuais: a falta de direitos iguais para os negros nos Estados Unidos; a repulsa à manutenção da guerra no Vietnã; a falta de um sistema de educação universalizado na França e em diversos países europeus. No Brasil, as pessoas lutavam contra regimes ditatoriais sanguinários, afeitos à prática sistemática da tortura e à supressão de qualquer pluralidade de pensamento ou de idéias. O mesmo aconteceu, para citar alguns países mais, na Argentina, no Chile, no Paraguai. O ponto é que a ocupação dos lugares públicos representava uma inequívoca resposta aos governantes do quão erradas estavam suas políticas sociais, econômicas, bélicas. E também suas instituições: da presidência das Repúblicas até as reitorias das Universidades.

Ainda temos presente em nossa memória coletiva os sonhos e as utopias destroçadas ao longo do século 20, que foi por qualquer ângulo que se observe, um dos períodos mais tumultuados da história humana, marcado por numerosas convulsões, revoluções e rompimentos radicais com o passado. Aquele século, ainda tão fresco na memória, viu entrar em colapso o sistema colonialista, e a derrocada dos grandes impérios do século 19, além da ascensão e queda das vastas e desastrosas experiências totalitárias, inspiradas tanto no fascismo quanto no comunismo. Alguns destes experimentos político-ideológicos resultaram extremamente destrutivos, envolvendo a morte de milhões de pessoas, e decretando o término de antigos estilos de vida e tradições, além do descrédito acelerado de instituições honradas pelo tempo.

De forma quase que concomitante víamos o surgimento de outros movimentos e tendências mais positivos em sua relação com a sociedade humana. É fato que tanto as descobertas científicas quanto as novas idéias na área das ciências sociais estimularam muitas transformações econômicas, culturais e sociais de natureza progressista. E isto, por si só, mostrou-nos uma trilha aberta para novas definições de direitos humanos e afirmações da dignidade pessoal, para oportunidades ampliadas de realização individual e coletiva, e para novas e audazes vias de avanço do conhecimento e da consciência humanos.

Esses processos gêmeos – o colapso das velhas instituições por um lado e, por outro, o florescer de novos modos de pensamento – são provas de uma clara tendência que vem ganhando ímpeto durante os últimos cem anos: a tendência rumo à crescente interdependência e integração da humanidade.

Ao mesmo tempo em que graves violências são cometidas contra o meio-ambiente, vemos surgir uma profunda consciência ecológica, sinalizando, quiçá, a alvorada de um tempo menos sombrio quanto à compreensão de que sendo os recursos naturais do planeta limitados o consumo humano destes tem que ter limites. Não se pode consumir, de uma só vez, e de forma tão predatória, o que constitui a herança comum a todos, sejam ricos ou miseráveis, sejam homens ou mulheres, africanos, europeus, asiáticos, árabes, latino-americanos, temos sempre um destino comum a partilhar. Mas ter algo a partilhar não é o mesmo que dizer que o que será partilhado será bom.

É por isso que precisamos escolher – antes – se existirá algo a ser partilhado no futuro. A noção tremendamente equivocada e que tanto prejuízo trouxe à nossa espécie ao longo dos milênios, noção de que a terra nos pertence e não o seu exato oposto, nós é que a terra pertencemos, tem levado gerações de seres humanos a traçar fronteiras que inicialmente são geográficas mas que na prática não passam de zonas de exclusão, fronteiras protegidas por um belicismo feroz que nada mais produz salvo a morte dos mais vulneráveis dentre nós: aqueles que consideramos ser nossos “dessemelhantes”.

E como é ridícula e disparatada a ideia de que existem esses tais “dessemelhantes humanos”. Mas eles estão quase que onipresentes por todas as partes do mundo dito desenvolvido, rico, opulento, arrogante. Os dessemelhantes engrossam intermináveis listas de pessoas a serem deportadas, encontram-se em salas de aeroportos ou de delegacias especialmente para tratá-los como caso de polícia. Eles são os subempregados dos países ricos: sujeitam-se a extenuantes jornadas diárias de trabalho em troca de 1/10 do que seria pago a “um seu nacional”. São os deserdados da Terra, aqueles que não podem exigir respeito aos seus direitos humanos com medo de serem deportados, como coisa imprestável, inútil.

Os dessemelhantes guardam alguma similitude entre si: são originários daquela zona que, por mais que progrida economicamente, continuará segregada ao eterno “terceiro mundo”, que é essa criação política (e monstruosa) feita por aqueles luminares do pensamento que ainda se autoproclamam ornamentos centrais da civilização humana. Os dessemelhantes são, portanto, latinos, sul-americanos, africanos, asiáticos.

Neles os rostos são todos indígenas – os proprietários originais da América -, a pele é negra, morena, amarela; a estatura é de mediana a baixa; os olhos são puxados, os corpos quase sempre frágeis e esquálidos.

Não faz muito, visitando com a toda a família a Itália, observei um bom número de africanos fazendo apresentações artísticas junto ao Coliseu, em Roma. Depois vi que em várias regiões de Roma a quantidade de africanos era bastante perceptível. Indaguei a um amigo nativo sobre essa imigração tão evidente na capital italiana. Ele me respondeu: “Os africanos chegam em levas em busca de trabalho, quando não para fugir de guerras civis em seus países… aqui eles são chamados de “extracomunitários”. Aquilo me causou um imediato sentimento de mal-estar. A palavra escolhida pela establishment tinha clara conotação de realçar a dessemelhança, algo como se outros humanos estivessem sendo tratados

como “extraterrestres”, e gente desconhecida em uma tradição que preza a diferença não como fator positivo e sim como algo que provoca hostilidade e agressividade dos que se sentem em sua zona de conforto, dos que partilham da mesma língua, da mesma história, das mesmas cosmogonias, da mesma forma de se relacionar com o Sagrado.

Mas voltemos à proposta inicial deste artigo. Como poderemos compartilhar uma atmosfera pura, límpida, um ar ouro que tanto necessitamos para sobreviver, se em alguma parte do mundo as “fábricas de envenenamento do ar” seguem a todo vapor? Essas fábricas se alojam em algum lugar nebuloso de nossa consciência humana e se manifestam através de hábitos comportamentais nocivos, desde o automóvel que serve para nossa locomoção diária e com sua diária emissão de gases, até o uso de produtos, em sua maioria supérfluos, que utilizam embalagens e outras formas de acondicionamento como gases comprimidos em aerossóis e refrigerantes que nada mais fazem que degradar a camada de ozônio a uma taxa de 5% a cada 10 anos sobre a Europa do Norte, chegando essa degradação a estender-se a sul ao Mediterrâneo e ao sul dos EUA.

Contudo, a degradação de ozônio sobre as regiões polares é a mais dramática manifestação do efeito global geral. As provas científicas mostram que os compostos na Antárctida de origem humana são responsáveis pela criação do buraco de ozônio Antárctico e são provavelmente responsáveis importantes pelas perdas globais de ozônio. Ou seja, nunca o buraco foi mais embaixo que agora.

O mesmo podemos dizer dos recursos marinhos, fonte milenar de alimentos para a espécie, já em marcha batida para desaparecer da categoria de recursos naturais acessíveis, uma vez que parte dos oceanos tem sido cemitério de lixo atômico-nuclear por parte de uma dezena e meia de nações que, a pretexto de produzirem energia nuclear para fins pacíficos, produzem grandes quantidades de lixo radiativo para tornar enfermas futuras gerações? Não é isso o que a Espanha, a Itália e a França fazem com a costa da Somália?

Os tempos parecem ter mudado. Mudanças que não deixam espaço para retrocesso. As pessoas ocupam as ruas para protestar contra um estado de coisas completamente inaceitável: serem tratados pelas elites governantes como massas de manobra, como coisas com prazo de validade para expirar, como cidadãos que foram degradados à condição de consumidores, mas sem o poder de consumir. E vão às ruas contra o sistema econômico colapsado, sistema fundado em privatizações e terceirizações, sistema useiro e vezeiro na flexibilização das leis trabalhistas e desrregulação do movimento de capitais.

Da Praça Tahír, no Cairo, até à Praça da Liberdade, nos arredores de Wall Street, a história é a mesma. As pessoas protestam contra um mundo seriamente dividido entre ricos e miseráveis, danificado irremediavelmente em sua compreensão de que aquilo que afeta a ‘parte’, afeta o ‘todo’. E aqui a ‘parte’ bem poderia ser assumida como a vasta maioria da humanidade, já que o ‘todo’ foi seqüestrado por um punhado de delinqüentes internacionais, trânsfugas transnacionais, travestidos em operadores econômicos, ora representando seus governos, ora representando apenas e tão somente seus próprios interesses pessoais, quase sempre amparados em métodos fraudulentos de auferir lucros estratosféricos com a miséria do ‘todo’.

Das ruas de Barcelona às avenidas de Trípoli e do centro de Londres às praças de Damasco e de Tel-Aviv, vemos ondas de seres humanos expondo indignação genuína contra o modelo de um mundo há muito estacionado na UTI, catatônico e em estado vegetativo avançado.

As faixas carregadas por idosos e jovens, seja em Atenas ou em Nápoles, falam da urgência de se criar empregos para todos, dizem não aos planos desumanos que prevêem o corte de milhares de empregos na máquina pública, se recusam a aceitar o não pagamento de pensões e de aposentadorias e muito menos os juros abusivos cobrados por uma banca internacional completamente tresloucada e tão sólida quanto uma montanha de gelatina.

No fundo, o que todas as multidões desejam é apenas – e tão somente – uma coisa: Justiça.

Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,

Fonte: Carta Maior

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