Os obstáculos à justiça social

Autores propõem reformas profundas na distribuição da riqueza

por Amélia Cohn

Contemplada em dois volumes sobre o eixo que dá seu título, Políticas Sociais, Desenvolvimento e Cidadania é parte da iniciativa da Fundação Perseu Abramo Projetos para o Brasil. Oportuna, a obra organizada por Ana Fonseca e Eduardo Fagnani transcende o período eleitoral em que vivemos, arrebatado de surpresas do destino. A virtude da publicação reside, por isso mesmo, no teor dos textos que os compõem: são textos engajados, mas não limitados por uma postura militante.

A distinção aqui é crucial: a coordenação dos Projetos é de uma instituição partidária, o período é eleitoral, mas a preocupação dos responsáveis pela publicação foi a de reunir especialistas do mais alto gabarito (41 ao todo) para tratarem em 22 capítulos dos temas vinculados mais especificamente ao que se convencionou denominar de “área social”. Claro que esses especialistas foram recrutados de um determinado espectro de perspectiva política, aquele que renega com fundamento o neoliberalismo. Nada mais natural, e diria mesmo apropriado. Mas não comungam da mesma raiz partidária, nada mais saudável.

O mote orientador dos textos está logo na introdução: “Desbravar caminhos inovadores para construir uma agenda nacional de desenvolvimento que priorize a distribuição da renda e a justiça social. O momento exige que as ‘vozes das ruas’ prevaleçam sobre as ‘vozes do mercado’” .

E é exatamente o que se encontra nesses dois volumes: diagnósticos setoriais das distintas áreas sociais, que apontam avanços significativos obtidos no atual século, demonstrados por indicadores bem trabalhados, acompanhados – e isto é fundamental – de análises que elucidam os pontos de estrangulamento e os obstáculos estruturais que precisam ser vencidos para que mais se avance na conquista de uma sociedade mais equitativa.

Nesse ponto, as análises são impiedosas: o avanço nas conquistas sociais, se conta com um marco legal dos direitos fundamentais e sociais na Constituição de 1988, para se concretizar requer urgentes reformas estruturais na distribuição da riqueza no País. Faz-se necessária uma reforma tributária e fiscal, da propriedade da terra, uma não concessão ao mercado e aos ajustes econômicos, por meio de novas formas de se calcular as contas públicas. Exemplos demonstrados como necessários são: a extinção da Desvinculação dos Recursos da União (DRU), que retira recursos da área social, em especial da Seguridade Social; o necessário cumprimento dos preceitos constitucionais que regem a mesma Seguridade Social; a taxação progressiva sobre a propriedade e as heranças; o rigor na utilização dos mecanismos de isenção tributária para o setor econômico.

Mas, se esses são alguns exemplos da área econômica stricto sensu, do ponto de vista da institucionalidade na implementação das políticas sociais há que se enfrentar constrangimentos próprios do aparato burocrático e da cultura histórica da prática da política pública no Brasil: avançar na aprendizagem e na prática de processos de descentralização não só vertical como horizontal; na prática de políticas sociais não competitivas entre si por recursos públicos ou por “selos” setoriais via programas de maior ou menor visibilidade social; a capacidade de o Estado ouvir e reconhecer as demandas sociais, o que não se resume, embora seja de importância central, na participação da sociedade, via conselhos, no processo de tomada de decisões e de implementação das políticas e programas sociais. Mais do que isso, há que se adotar a prioridade do desenvolvimento como intenção política primária e a redistribuição da riqueza como meta a ser atingida.

Isso equivale a afirmar que – e eis aí outro grande atributo dessa publicação – propostas futuras não só são bem-vindas (e a maior parte dos capítulos termina com elas), como demandam algo ausente nas pautas em debate na agenda pública do País na atualidade: a definição clara de uma proposta de sociedade nacional, mais que de nação, que articule as várias ações e políticas na área social. E aqui, com o gosto de “quero mais” que a publicação nos deixa, fazem falta não só a centralidade temática em capítulos exclusivos sobre o que se convencionou denominar na área de “políticas transversais” – aquelas destinadas a segmentos sociais específicos – como uma discussão conjunta mais consistente, com o grupo que compôs a autoria coletiva dos textos, sobre desenvolvimento econômico e social no País, inclusão social e autonomia e construção de identidades sociais coletivas, e sobre os efeitos que os progressos e avanços na área social nesse período mais recente vêm tendo para a constituição de uma sociedade mais autônoma e igualitária.

Amélia Cohn é socióloga, professora aposentada da USP

Fonte: Carta Capital

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