Oscar refletiu as transformações da sociedade americana, por Joel Zito Araujo

Premiação consagrou não só a diversidade de raça, mas também as de gênero e temática

 

por Joel Zito Araujo

Numa conversa particular com uma das votantes do Oscar, sobre como decidir entre tantos bons filmes, ela disse que, na dúvida entre “Gravidade” e “12 anos de escravidão”, foi Steve McQueen quem a fez ficar dias pensando e conversando com seus amigos. Para ela, este sim é um filme que ficará na História.

Certamente, temos aqui o retrato de um novo tempo. As premiações refletem as transformações da sociedade norte-americana e a composição dos 6 mil votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood na era Obama. As premiações do último domingo espelham o que há de mais progressista na sociedade americana do século XXI. Pela primeira vez em sua história, a Academia escolheu para a sua presidência uma mulher negra (Cheryl Boone Isaacs), escolheu como mestre de cerimônia do Oscar uma comediante lésbica assumidíssima (Ellen DeGeneres), e indicou e premiou a diversidade de raça, de gênero e de temáticas. Afinal, foram dois prêmios de melhor ator para “Clube de Compras Dallas” e, indiretamente, para a temática da Aids, prêmio de melhor diretor para um mexicano (Alfonso Cuarón, de “Gravidade”), prêmio de melhor atriz para a australiana branquíssima Cate Blanchett, além dos prêmios (melhor filme, atriz coadjuvante e roteiro adaptado) para o longa de Steve McQueen.

steve mcqueen

A indústria de cinema de Hollywood também reconheceu a diversidade mundial ao homenagear o trabalho do nosso querido Eduardo Coutinho e de outros grandes cineastas do cinema estrangeiro. E, depois dessa premiação de “12 anos de escravidão” como o filme mais importante do ano, e das nomeações anteriores de filmes com “Preciosa — uma história de esperança”, a Academia começa a debelar as diferenças entre o cinema independente norte-americano e o cinema de Hollywood. Com tudo isto, ela chegaria perto da perfeição se premiasse alguma das qualidades do filme de Martin Scorsese criticando os lobos de Wall Street, o maior vilão da sociedade americana atual.

Mas será que a vitória de um Steve McQueen negro redime Hollywood de 45 anos de ausência de um prêmio de tal magnitude para um diretor afro-americano? Estou estabelecendo como marco o filme “The Learning Tree”, de Gordon Parks, lançado em 1969, e considerado pela Biblioteca do Congresso norte-americano como um dos dez melhores filmes da História. Depois vieram outros diretores, como John Singleton, Lee Daniels e, principalmente, o maior injustiçado de todos, Spike Lee, que ainda não teve sua obra e sua direção reconhecidas pela Academia.

Olhando para as tensões internas da sociedade norte-americana, o filme de Steve McQueen força o país a enfrentar as consequências de um passado escravista que, assim como no Brasil, foi cruel e profundamente desumano. Ainda podemos perceber facilmente os exemplos de um passado que continua precisando ser enfrentado e resolvido. Observem a maioria negra nas prisões norte-americanas e o racismo que atinge até o cotidiano de pessoas famosas como Forest Whitaker, também vencedor de um Oscar. Ele foi, no ano passado, acusado injustamente de roubar um iogurte em um loja nova-iorquina por não ter sido imediatamente reconhecido como celebridade pelo vendedor.

“Como não sentir inveja?”

Se observarmos a narrativa de “12 anos de escravidão”, Steve McQueen ainda tem um olhar estrangeiro. Mesmo sendo fiel ao livro que inspirou o filme, e provocando indignação com uma reconstituição hiper-realista das punições e dos controles das mentes e dos corpos negros, considerados como animais, demonstra ser um diretor negro que não teve a oportunidade, como Spike Lee, de receber a carga de reflexões da intelectualidade e dos artistas negros ao longo da História norte-americana. Certamente, até mesmo hoje, um filme como “Malcom X” teria dificuldade em ser premiado como o melhor pela força que demonstra a resistência e a afirmação do protagonismo negro na História americana. Dificilmente diretores como Spike Lee dariam destaque para histórias que necessitam de um Salvador branco, como o advogado que resgata Solomon, interpretado por Brad Pitt.

Mas, sendo um cineasta afro-brasileiro independente, como não sentir inveja das decisões tomadas pela Academia e pela indústria de Hollywood? Como ver o impacto do filme na sociedade norte-americana e evitar dizer “mirem-se no exemplo…”?

* Joel Zito Araujo é diretor de filmes como “A negação do Brasil” , “Filhas do vento” e “Raça” (este com Megan Mylan)

 

Fonte: O Globo

+ sobre o tema

Em marcha pelo fim da violência contra as mulheres, do racismo e da extrema direita

A Marcha Mundial das Mulheres se manifesta a respeito...

Kamala supera expectativas e encurrala Trump no debate

Na categoria previsões furadas, o governador da Flórida, o...

Caso Marighella: MPF pede condenação de 37 ex-agentes da ditadura

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma nova ação...

para lembrar

Netas de escritora Carolina Maria de Jesus dizem viver ‘Quarto de Despejo 2’

Liliam, de 48 anos, vive da renda de faxinas...

Férias de Obama começam com trabalho para o presidente

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, começou suas...

Qual é a sua

Por Fernanda Pompeu Na metade dos anos 1960,...

“A gente precisa sair desse luto e ir para a luta”, diz Macaé Evaristo

Depois de ser anunciada como a nova ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, a deputada estadual mineira Macaé Evaristo (PT) disse nesta segunda-feira (9) que...

Esther Dweck assume interinamente Ministério dos Direitos Humanos

Após demitir Silvio Almeida do cargo de ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em meio a denúncias de assédio sexual, o presidente...

Comunicado sobre a demissão do ministro Silvio Almeida

Nota à Imprensa Diante das graves denúncias contra o ministro Silvio Almeida e depois de convocá-lo para uma conversa no Palácio do Planalto, no início...
-+=