Como africano, Daniel Nunes queria conhecer o seu próprio continente, aquele que tinha perdido a sua história. Em seis décadas, construiu uma das mais importantes colecções particulares do mundo lusófono sobre África.
Por SUSANA MOREIRA MARQUES do Público.pt
Antes de conhecer a biblioteca, foi preciso conhecer a casa, porque esta biblioteca não existiria sem esta casa e vice-versa. Há lugares onde se percebe como tudo está realmente ligado e vale a pena olhar para muitas coisas antes de chegar aos livros. Primeiro, o terreno em redor da casa, onde já existe um gesto de coleccionador e um gesto de querer ter à mão o que é importante. Podia falar-se em auto-suficiência mas nunca se sabe o quão suficiente é suficiente. Daniel Nunes abre a porta da cozinha, descobrindo árvores de fruto, sai, e volta com lúcia-lima.
No lugar mais discreto, mas ao lado de uma janela pequena, fez um recanto de leitura, com espaço para um banco e uma mesa para um livro. Num suporte, está aberto um Missal Romano, editado para as colónias ultramarinas.
Daniel Nunes nasceu e cresceu em Cabo Verde. Viveu e trabalhou como engenheiro em vários países africanos. A família instalou-se nesta casa nos arredores de Lisboa, uma casa que ele planeou pensando em todos os pormenores e que agora parece ser o seu próprio e particular país.
E, finalmente, a biblioteca: a primeira parte fica numa mezzanine sobre a sala. De um lado e do outro, há varandas fechadas que asseguram que entre o sol e os livros há vários metros, muita espessura, porque a casa foi projectada para que os livros pudessem manter-se bem conservados. A temperatura, aqui, não muda com as estações. As prateleiras vão do chão ao tecto e foram construídas ao milímetro, ajustáveis a várias alturas de livros. Foi ele mesmo que fez parte delas, assim como o chão em madeira, para o qual teve ainda a ajuda do filho e da filha mais velhos.
Antes de morrer, a mulher ajudou-o a catalogar os livros desta secção da biblioteca: são cerca de 12 mil volumes, oito mil relacionados com a história da escravatura. A biblioteca continua na cave, com outros 30 mil volumes aproximadamente. O documento mais antigo que tem é de 1512.
Esta é a parte da biblioteca mais bonita, onde Daniel quis que fosse agradável estar. “Não quero estar num armazém de livros”, diz. “Quero sentir-me bem na minha biblioteca.”
Demora surpreendentemente pouco para encontrar um título. Sabe onde estão todos os livros. Estão organizados por assuntos, autores, depois por tamanhos.
No centro da biblioteca, estão duas secretárias onde pode ler e trabalhar e que podem ser utilizadas por eventuais visitas. Já tem recebido estudantes que lhe pedem para consultar livros raros. São poucos. É a primeira vez que Daniel Nunes mostra a biblioteca publicamente.
Como começou
Terá sido em 1953 ou 1954, numa daquelas cartas que enviava para Cabo Verde, para o pai, contando como ia passando em Lisboa com o irmão mais novo, sempre terminando com: “Saudades dos filhos amigos que a benção em nome de Deus vos pede”. Eram cartas que o pai depois devolvia, junto com as respostas, corrigidas a vermelho para que aprendesse a escrever bem. E terá sido numa delas que o pai autorizou que o irmão começasse a fumar e instruiu Daniel em relação ao dinheiro que devia retirar da mesada. A Daniel desagradava-lhe o tabaco e decidiu que, de cada vez que desse sete tostões ao irmão para um maço, guardaria outros sete tostões para si. Enquanto o irmão começava um vício, ele começava outro. Primeiro, comprou os livros que o pai o tinha proibido de ler, como Palavras Cínicas, de Albino Forjaz de Sampaio. Lembra-se que o primeiro livro que comprou teve de pagá-lo em duas prestações.
Naquela época eram poucos os estudantes africanos, mestiços e negros, em Lisboa, e em pouco tempo Daniel Nunes conhecia-os a todos, incluindo muitos daqueles que viriam ser figuras fundamentais na luta pela independência das colónias. Amílcar Cabral tinha chegado a ser estudante do seu pai em Cabo Verde.