Thiago Ansel
A primeira semana deste mês foi marcada por uma série de eventos que colocou em questão as mais notórias políticas de Estado destinadas a algumas das favelas cariocas – sobretudo, no que se refere ao tratamento dispensado por agentes do Estado a moradores destes espaços.
No domingo, quatro de setembro, houve confusão entre moradores e militares da Força de Pacificação no Conjunto de Favelas do Alemão, Zona Norte, que terminou com uma mulher ferida e moradores detidos. No mesmo fim de semana, na Cidade de Deus, Zona Oeste, houve conflito entre moradores e policiais da UPP local, no qual um PM ficou ferido. Segundo moradores, houve um bate-boca com policiais gerado por discordâncias sobre músicas tocadas em uma confraternização na comunidade. Um novo confronto na Cidade de Deus ocorreu menos de uma semana depois e, desta vez, um morador também ficou ferido.
Ainda na primeira semana do mês, três PMs da UPP do Fallet foram flagrados dentro de um carro com R$ 13.000,00, cuja procedência não souberam explicar. A suspeita de corrupção levou ao afastamento do comandante da UPP da Coroa, Fallet e Fogueteiro, capitão Elton Costa e do subcomandante da mesma unidade, tenente Medeiros. O secretário de segurança, José Mariano Beltrame, negou que haja uma crise nas UPPs. Em entrevista coletiva via Twitcam – ferramenta do microblog Twitter que permite que os usuários conversem com alguém diante de uma câmera que transmite ao vivo – Beltrame declarou que haverá um seminário, na próxima sexta-feira (16), no qual se discutirá os ajustes a serem feitos na política, diante dos recentes acontecimentos.
O secretário aproveitou para reafirmar que o governo estadual não abrirá mão das UPPs. “Sabemos que a segurança nas favelas é um problema difícil porque é histórico. É absolutamente necessária a pacificação destas áreas. Os governos anteriores sempre foram cínicos ao dizer que os serviços não chegavam àqueles locais por conta da falta de segurança. Hoje, isso não acontece mais. Devolvemos aqueles territórios à sociedade”, disse aos tuiteiros.
A denúncia de corrupção e a seqüência de distúrbios ocorridos em favelas pacificadas ou em processo de pacificação – como é o caso do Alemão -, mostraram, de um lado, que as UPPs, como qualquer política recém implantada, precisa de vários ajustes, e, de outro, o mais óbvio: a inadequação dos militares do exército para lidar com a população favelada e seu cotidiano.
Os acontecimentos do início de setembro deram ainda mais fôlego ao debate sobre em que medida os processos de pacificação foram, até agora, capazes de reinstituir de forma plena o estado democrático de direito nas favelas.
Para Marcelo Zacchi, diretor de Projetos Especiais do Instituto Pereira Passos (IPP), responsável pelo programa UPP Social, cujo propósito é promover o desenvolvimento social nas favelas pacificadas, o caminho é a negociação para o estabelecimento de padrões aceitos por todos. “Durante alguns meses, o baile funk da Tabajaras mostrou que a música e a festa convivem bem com a pacificação e com regras que respeitem os direitos da vizinhança. No Borel, a UPP Social e o comando local da UPP participam com os moradores de uma comissão para discutir regras para a realização de bailes e outros eventos públicos. Estes caminhos indicam que refazer os acordos e estabelecer regras e padrões que reconheçam o contexto das comunidades é essencial para o sucesso de uma transição para a adoção dos parâmetros vigentes na chamada cidade formal”, disse.
Problemas com a ocupação militar no Conjunto de Favelas do Alemão
“Qual outro território aceitaria conviver num espaço de exceção?”, questiona Alan Brum, coordenador da ONG Raízes em Movimento e morador do Alemão
Ainda mais complexa do que a das favelas pacificadas é a situação do Conjunto de favelas do Alemão, onde sequer há UPPs instaladas e o controle militar sobre o espaço estabelecido, desde novembro do ano passado, deve durar até junho do ano que vem.
Alan Brum, morador do Morro do Alemão e coordenador da ONG Instituto Raízes em Movimento, que funciona na favela, diz que os distúrbios entre moradores e militares no local são reflexos da já prolongada ocupação do exército. “A situação de alguns conflitos se dá simplesmente pelo fato de existir a militarização. A pergunta a ser feita é: qual outro território aceitaria conviver num espaço de exceção? Barra? Ipanema? O exército não foi formado para conviver sistematicamente num ambiente de normalidade. Existe uma cortina de fumaça para cobrir a incompetência de uma política de segurança efetiva e duradoura. Se cria um ambiente que por mais que haja orientações de superação dos problemas, sempre desemboca num conflito, pois não se permite a normalidade na vida das pessoas. Assim, na forma como os conflitos são tratados, se reafirma a criminalização do território e da pobreza”, observa Brum.
Hipóteses equivocadas
O Disque Denúncia registrou 384 ligações com relatos sobre a presença do tráfico no Conjunto de Favelas do Alemão, desde o início do controle militar da área, em 2010, até a primeira semana deste mês.
Apesar do nível de reprovação dos moradores à presença de grupos criminosos, que se pode depreender da quantidade de denúncias sobre atividades ilícitas no local, no dia seguinte ao confronto entre moradores e militares, o comandante da Força de Pacificação, general César Leme Justo, se apressou em declarar à imprensa que traficantes poderiam estar por trás das manifestações contra a presença do Exército no Alemão.
Em pronunciamento na Alerj, na semana dos eventos ocorridos no Alemão, o deputado estadual Marcelo Freixo classificou de absurdas as tentativas de estabelecer relação entre os protestos dos moradores e interesses de traficantes que estariam por trás das ações. “Dizer que qualquer manifestação de morador contra a arbitrariedade do poder público é porque por trás do morador tem o tráfico de drogas é um absurdo. Isso é você criminalizar a voz da favela. Ninguém mais que o próprio morador da favela foi vítima do tráfico de drogas daquela favela. Quem era a vítima principal do tráfico de drogas do Alemão? O morador do Alemão. Ou éramos nós? Não!”, constata Freixo.
Para Alan Brum, a partir de agora é essencial que seja construída uma porta de saída para o processo que ele chama de “militarização” junto à população local. “Gradualmente, se deve promover o envolvimento da população num novo processo de governança compartilhada, o que tornará possível a consolidação de mudanças efetivas e responsabilidades mútuas”, conclui.
Fonte: Observatório de Fevelas