Padrinho da classe C

Um dos principais pesquisadores do País, Marcelo Neri fala da nova classe média, como denomina a classe C emergente, e da surpreendente redução da desigualdade no Brasil, uma exceção no mundo

A cena de uma África do Sul sob o regime do apartheid, com uma maioria negra mantida em guetos, sem direitos nem respeito, afastada da minoria branca, que tudo dominava, foi o primeiro choque que o economista Marcelo Neri teve a respeito da desigualdade, os 16 anos, quando seguiu para o país com pai, então funcionário de uma multinacional do petróleo.

 

Facilmente confundido com mais um dessa minoria sul-africana branca – tão louro que até cílios e sobrancelhas parecem não ter cor -, Neri se incomodou com aquelas diferenças e depois, de volta ao Brasil, foi buscar explicações para isso no estudo da economia.

 

Hoje um dos principais especialistas em pobreza no Brasil, no comando do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Neri se entusiasma ao constatar que o Brasil encontrou o caminho para reduzir as desigualdades. Tanto que possibilitou até mesmo o surgimento de uma nova classe média, como ele mesmo nomeou em seus estudos, a classe C emergente, que hoje representa mais da metade da população brasileira.

 

Convidado para palestrar num seminário sobre Microfinanças promovido pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB) em Salvador, Neri falou ao O POVO sobre o Brasil do passado e as perspectivas futuras. Leia os principais trechos da conversa a seguir:

 

O POVO – No seu livro, o senhor fala do surgimento da nova classe média, a classe C emergente, que já se configurou como a maioria. Mas agora, sua projeção é que essa classe C não cresça tanto. Qual o cenário ideal para o Brasil diante do que temos hoje?

Marcelo Neri – Não há um ideal, mas as coisas vêm numa direção boa, a classe AB já subiu mais de 2003 a 2011, subiu 54% contra 46% da C. Nos próximos três anos, a nossa projeção é que ela vai subir 29% contra 11% da C, então vai ter uma distância maior, mas com desigualdade em queda. Como a economia está crescendo e a desigualdade está caindo, as pessoas são lançadas de baixo para cima, e a pobreza está caindo fortemente.

O POVO – Uma das projeções do seu livro é que essa será a década da educação. Porém, ainda que os indicadores estejam melhorando no país, há um fosso.

Marcelo Neri – Mas eu acho que no Brasil a gente tem que separar o nível da variação. Se a gente olhar, o Brasil foi um dos três países, de acordo com o PISA (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes), que pega a elite da educação mundial, que cresceu mais na qualidade da educação, que é o que importa mais, embora seja o número 54 de um ranking de 67 países em proficiência. Mas está crescendo. Então, se você está preocupado em projetar crescimento, crescimento da classe C, queda da desigualdade, movimentos, o que importa são as mudanças nessas variáveis, como educação. E elas estão mudando. O que me permite algum otimismo sobre o Brasil no futuro é o fato de termos grandes problemas pela frente. Quer dizer, o Brasil não se move junto com a fronteira, a gente pode dar saltos em direção à fronteira. Eu acho que essa é a única vantagem de ter problemas, é que se você resolver, você dá saltos.

O POVO – O senhor está participando de um grupo de discussão sobre as metas do milênio pós 2015. Mas muitas das metas atuais não serão alcançadas. Como é possível projetar novas metas diante do insucesso de algumas?

Marcelo Néri – Eu acho que é sucesso. As metas do milênio tiveram grandes sucessos, em particular aqui no Brasil, mas eu acho que na história da humanidade há um paradoxo, nunca tantas pessoas, em termos relativos, saíram da miséria, dado o efeito China-Índia, países que concentram metade dos pobres do mundo. Mesmo com crise. O período de crise afetou os ricos, e não esses dois emergentes e os pobres de uma maneira geral. Não que os pobres não estejam sofrendo, mas China e Índia, que abrigam a metade dos pobres, seguem crescendo. Então, eu acho que as metas do milênio, em termos de resultado, são uma espécie de um Santo Graal, você nunca vai chegar a elas, mas a direção enobrece o espírito, não é só uma globalização econômica.

O POVO – E no Brasil?

Marcelo Neri – O Brasil cumpriu as metas do milênio na metade do tempo no que tange a pobreza. O dado mais espetacular do Censo 2010 é a mortalidade infantil, embora as mulheres brasileiras estejam tendo menos filhos – hoje em dia cada mulher nordestina tem dois filhos, que é padrão classe média. A taxa de mortalidade infantil caiu 46% no Brasil em uma década, e 58% no Nordeste. Espetacular isso. Agora, o mundo tem um certo paradoxo. As pessoas invadem Wall Street por causa de desigualdade, a city londrina, Davos, mas a desigualdade mundial está numa queda frenética, apesar de estar aumentando em dois terços dos países do mundo, incluídos desenvolvidos, China e Índia. São países muito importantes, Rússia, África do Sul, os Brics, com exceção do Brasil. Mas por que a desigualdade está caindo? Pelo efeito China-Índia, embora ela esteja aumentando dentro dos países. Na maioria, não no Brasil. Na verdade, a queda da desigualdade brasileira é muito paralela à queda mundial.

O POVO – Só para entender, entre os países a desigualdade está caindo, mas dentro dos países está crescendo.

Marcelo Neri – Está crescendo. Por exemplo, o pessoal invadiu Wall Street por causa da desigualdade americana. Se fosse pela mundial, deveríamos estar comemorando. Então, meta do milênio e outros indicadores te obrigam a olhar para o mundo. Porque, na verdade, nessa crise, que foi apelidada pelo Lula de “a crise dos olhos azuis”, a desigualdade vai cair mais ainda, mas não é só queda de desigualdade, chama a atenção para as qualificações. Agora, a desigualdade mundial está em queda, a pobreza no mundo está em queda, ou seja, as metas do milênio e as novas metas são muito importantes, para você dar uma dimensão humana. E aí entra um pouco essa história de classe média, que a gente falou. A classe média brasileira é mundial, porque se você olhar para a classe média tradicional, é a americana e a europeia, ela tem dois carros na garagem, tem dois filhos e dois cachorros. Não é dessa classe média que a gente está falando.

O POVO – O brasileiro se mirava nela e achava que era isso.

Marcelo Neri – Achava que era isso. Só que 60% da população mundial é mais pobre que o primeiro percentil americano, 1% mais pobre, o americano é mais rico que 60% da população mundial. Achar que o meio da distribuição americana é a classe média mundial, não é, daí todo mundo vai ser pobre. A classe média brasileira é o meio da distribuição brasileira, e o meio do Brasil é o meio do mundo, porque o Brasil é um espelho do mundo em vários aspectos. 

O POVO – O Brasil é a classe média do mundo?

Marcelo Neri – O Brasil é a maquete do mundo, inclusive na parte de classe média. É uma coisa muito intuitiva, e o Brasil tem isso inclusive na sua diplomacia. Eu acho que a preferência do Brasil, não estou emitindo juízo de valor, o Brasil prefere talvez ser o líder da segunda divisão do que ser o lanterninha da primeira, é um pouco do nosso espírito, porque o Brasil quer olhar para o mundo. Eu acho que essa é uma vantagem do Brasil. Você não pode comparar o Brasil a China e Índia, China e Índia são muito mais importantes economicamente, e serão cada vez mais, a gente vai ficar pra trás. A força do Brasil é o soft power, é simbólico. O Brasil sempre foi um país exótico, que não era muito sério, que não dava certo, depois que parou de crescer, ou mesmo quando crescia, crescia com desigualdade em alta. Hoje em dia o Brasil mantém esse lado exótico, que atrai a imaginação das pessoas, é um país gostado, só que agora está sendo visto como um país que está dando certo. Não é um espetáculo do crescimento, mas é um espetáculo de crescimento a preços populares, que é o valor humano. A gente de um lado é muito uma média mundial, uma maquete do mundo, e por outro a gente tem valores que são admirados, o otimismo do brasileiro, essa positividade, apesar dos pesares, que são admirados do outro lado do mundo. E agora com Copa, com Olimpíadas, esses símbolos vão ganhar ainda mais visibilidade.

O POVO – Em relação ao Nordeste, as desigualdades aqui dentro continuam muito intensas e em relação ao Sudeste/Sul, mais ainda.

Marcelo Neri – Verdade. E na tentativa de entender o Nordeste, percebi este seria o lado indiano da Belíndia brasileira. O Nordeste cresce tanto quanto a Índia. Enquanto o Sul e o Sudeste maravilha crescem tanto quanto a Bélgica, hoje em dia. O Nordeste cresceu, pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), seis vezes mais rápido do que São Paulo, e é comparável pela população. Cresceu 42% contra 7,2% de São Paulo, de 2001 a 2009, que é a última Pnad. Isso indica queda de desigualdade, mas as desigualdades dentro do Nordeste não estão caindo tanto, porque a atração de indústrias, acho que é uma agenda importante, mas dá para ser positivo condicionado, se você fizer boas políticas. Eu lá no Rio tenho participado do desenho de políticas locais para cidades, para o Estado, que são complementares ao Bolsa Família. É uma nova agenda do governo federal, do MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), de dialogar com Estados. Não por coincidência, os dez Estados que entraram nesse tipo de conversa são todos Estados ricos do Sul, Sudeste e alguma coisa do Centro-Oeste, nada do Nordeste. No Nordeste o problema é muito grande, mas, de alguma forma, vão se fazer algumas tratativas para esse tipo de política ser apoiado. 

O POVO – Mas qual o melhor caminho para mudar isso?

Marcelo Neri – Eu sou muito positivo com as possibilidades de você atacar a pobreza. Por exemplo, alguns anos atrás, eu estava fazendo a avaliação de 11 experiências na América Latina, que até virou um livro, e começamos a avaliar novamente o Crediamigo, que tínhamos avaliado em 2000. Resultados fantásticos. Vou te dar um exemplo: o lucro do pequeno empresário, o de fundo de quintal, cresceu 13% ao ano. Um negócio assim bastante interessante. Aí em 2009, eu participei do processo, essa tecnologia foi para as favelas cariocas. Mas depois, o que me chocou muito na época foi o seguinte: eu chegava com os resultados do livro e conversava com algumas autoridades, mostrava os resultados. Mas o dono do programa, o governo federal, não o reconhecia. Só que agora, este ano, a Dilma, com a sutileza que lhe é peculiar, disse “é esse aqui”, e criou o Crescer. Então, nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Não dá para abrir mão de instituições como os mercados, mas você pode querer ter mercados mais decentes.

O POVO – Impor limites?

Marcelo Neri – Impor limites, regular, parece que essa é a agenda da presidente, e te confesso que em princípio fiquei um pouco assustado, comecei a olhar dados que me surpreenderam. Assim, embora o Brasil esteja se tornando um país mais igualitário, a cena que me passava na cabeça era “então os pequenos empresários estão florescendo, mercados mais competitivos etc.”, uma cena harmônica. Não. As empresas brasileiras que estão crescendo são as grandes empresas, por conta dos impostos, para competir com o mercado externo. É o fordismo formal que me preocupa. A cena brasileira, como se diz, não é para amadores, principalmente o Brasil de hoje, porque o Brasil de hoje não é aquele que estava no espelho retrovisor, é uma cena nova que está pela frente. Se a gente ficar olhando para o espelho retrovisor, a gente vai cair da escada. 

O POVO – O senhor considera suficientes as medidas tomadas pelo governo federal, com incentivo ao consumo, para afastar a crise internacional?

Marcelo Neri – Eu investiria muito mais em poupança, para as pessoas manterem os padrões de vida adquiridos, investiria mais nos seguros dos brasileiros, porque, aqui no Brasil a gente acha que Deus é brasileiro, aquela imagem do Cristo decolando.

O POVO – É por isso que o brasileiro não poupa, porque acha que vai ganhar na loteria, que vai ficar rico?

Marcelo Neri – É isso. Como é que você consegue vender seguro no Brasil? Quando você oferece um sorteio, que é a antítese disso. O cara quer risco, é otimista, ele acha que vai ganhar. Esse é o problema. Ao mesmo tempo, hoje em dia, se você olhar para a história pregressa do Brasil e se olhar para o mundo, mesmo para os Brics, o que você vai aprender é o oposto do que está acontecendo no Brasil, por exemplo em redução de desigualdade. A desigualdade nos Brics não está crescendo, está explodindo, e quanto é que aumentou no Brasil a renda de um analfabeto, de 2001 a 2009: 47%. Quanto é que aumentou a renda de alguém com nível superior incompleto: caiu 17%. Nos outros países, quem tem muita educação ainda está aumentando muito mais do que quem está na base. Se fala em apagão de mão de obra. O verdadeiro apagão no Brasil: falta empregada doméstica, falta peão de obra, falta garçom, falta nas áreas mais ricas do Brasil. É completamente diferente do que acontece nos outros países e do que aconteceu na época do milagre brasileiro, quando a desigualdade explodiu. Agora ela está implodindo forte.

O POVO – E é sustentável?

Marcelo Neri – Está fazendo isso há 12 anos consecutivos. Tem coisas acontecendo no Brasil. O Brasil não é o país do futuro, o Brasil tem sido o país do passado, o que a gente está fazendo é recuperando os nossos déficits históricos. Criança morrer não é normal, muitas crianças ainda morrem, mas hoje em dia é metade, aqui no Nordeste, 58% a menos. O Brasil tinha uma desigualdade estupidamente alta, caiu muito, mas é a décima segunda do mundo, o que é uma má notícia, só que essa má notícia enseja uma notícia possivelmente boa, que a desigualdade pode continuar caindo. Esse é o nosso ativo, é o problema. Minha positividade sobre as mudanças que vão acontecer no Brasil é diretamente relacionada com o número de problemas que eu percebo que o Brasil ainda tem. Agora, se você não atacar os problemas, você não vai dar esse salto.

Multimídia

 

Leia os artigos publicados pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas

http://cps.fgv.br/

 

 

Fonte: O Povo 

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