Parte III: Mais abusos, menos punições

Relatórios da controladoria da ONU revelam outros abusos sexuais envolvendo soldados da Minustah; para ex-diretora do órgão, na maioria dos casos os soldados são repatriados e não são devidamente processados

Por Marina Amaral e Natalia Viana

O vídeo que sugere o estupro de um rapaz haitiano por soldados uruguaios, que vazou para a internet no começo de setembro, choca pela imagem mas não é exatamente sem precedentes.

Durante os sete anos de Minustah houve outros casos de suspeita de abuso sexual cometido por militares e policiais da ONU, seguindo o mesmo padrão de outras missões de paz pelo mundo. O que não reduz sua gravidade, ao contrário. Reflete a complicada a relação de uma força militar estrangeira em uma sociedade vulnerável como a haitiana.

Nesses casos, como aconteceu com os uruguaios, os soldados foram repatriados e ninguém sabe se e como foram punidos. Nos primeiros dois anos da missão brasileira, por exemplo, segundo uma alta fonte militar ouvida pela Pública, dois soldados brasileiros foram repatriados depois de uma haitiana acusá-los de estupro dentro de uma base militar.

“Claro, houve alguns deslizes, uns pequenos que aconteceram foram devidamente punidos”, comenda o militar de alta patente. “Teve gente repatriada. No nosso caso houve um incidente que não ficou comprovado, numa das bases de companhia nossa, uma denuncia de uma mulher que teria sido violentada. Mas no inquérito que a ONU fez, a seção de direitos humanos, ficou provado que ela freqüentava a base, se insinuava…” Segundo ele, embora o inquérito não tenha comprovado o crime, o comando do exército decidiu repatriar “imediatamente” os dois envolvidos. O exército foi procurado pela reportagem, mas não se manifestou sobre esse caso.

“Há muitos problemas em relação às forças de paz”, conta Inga Britt-Ahlenius, que foi diretora do Office of Internal Oversight (OIOS), uma espécie de controladoria da ONU, entre 2005 e 2010.

“O maior problema é o acordo com os países que contribuem com as força de paz, segundo o qual eles têm a responsabilidade de investigar e punir os seus soldados acusados de abusos. A ONU não tem nenhum poder de aplicar a lei mesmo nos casos em que o OIOS faz a investigação e produz um relatório sobre o caso”, diz ela.

“Também há o problema de alta rotatividade, os soldados só ficam no país por 6 meses e muitas vezes são repatriados antes que a investigação preliminar possa estar concluída”, diz Ahlenius, que durante seu período à frente do OIOS iniciou dezenas de investigações de abusos sexuais cometidos por soldados da ONU.

O número oficial de casos investigados foi reduzido de 108 de exploração sexual e abuso em 2007 para 33 em 2010; porém, mais de 200 acusações do tipo continuam sem solução.

“Se você finalmente consegue realizar a investigação, é raro que as descobertas do relatório sejam levadas a cabo. Muitas vezes enviamos pedidos de informação depois dos soldados serem repatriados e não obtemos resposta”, diz Ahlenius, que deixou a ONU acusando o secretário-geral Ban-Ki-Moon de agir contra a transparência (leia a entrevista completa abaixo).

No Haiti, sexo em troca de comida, celulares ou eletricidade

Uma rápida consulta aos relatórios do OIOS revela outros casos investigados internamente por “exploração sexual e abuso”. Poucos deles chegaram à opinião pública, embora um relatório do OIOS de 2005 sugerisse que a Minustah deveria “considerar informar a população local sobre casos má conduta sob investigação, a conclusão da investigação e a decisão final”. Ao que a Minsutah respondeu que a população local deveria ser consultada “caso a caso” e que “não deveria haver uma regra geral para informar o público sobre esses casos”. O mesmo relatório afirmava que “um numero significativo de membros da equipe (61 porcento) afirma que está havendo mal comportamento, mas ele não é detecdado e punido”.

Um dos casos mais rumorosos ocorreu em 2007 e levou ao repatriamento de 114 soldados do Sri Lanka em 2007, incluindo o vice-comandante do contingente, acusados de “transações sexuais, particularmente com o pagamento a prostitutas, algumas delas adolescentes”. “Em troca de sexo, as crianças recebiam pequenas quantidades de dinheiro, comida, e algumas vezes celulares”, diz o relatório da ONU. “OIOS descobriu que a exploração sexual e o abuso eram frequentes, ocorriam normalmente à noite e virtualmente em todas as localidades onde o contigente era empregado”.

Neste caso, apontado por Inga-Britt como uma exceção, os soldados enfrentaram julgamento militar ao retornar para o seu país. “Foram repatriados rapidamente e passaram por uma corte marcial. O Sri Lanka pediu a nossa ajuda, e nós colaboramos para a instrução do processo. Mas é o único caso que eu conheço em que as descobertas do relatório foram levadas a cabo”.

Outro relatório de 2008 aponta, sem revelar a nacionalidade dos soldados envolvidos, que “membros do contingente militar trocaram comida por serviços sexuais com duas mulheres locais, uma das quais, menor de idade. OIOS também descobriu que a menina deu à luz a uma criança em um veículo militar, na companhia de diversos soldados, a caminho do hospital. O bebê seria filho de um oficial”. Como relatado por Inga-Britt, o documento conta que o OIOS “referiu o caso ao país contribuinte para que tomasse a ação apropriada; no entanto, o departamento não recebeu nenhuma resposta”.

No começo deste ano, a controladoria reporta outro abuso em troca de sexo: “O OIOS concluiu que um oficial sênior facilitou o emprego casual de uma mulher local e conseguiu prover uma ligação clandestina de eletricidade para outra, em troca de favores sexuais; e que três soldados travaram relações sexuais com mulheres locais que resultaram no nascimento de crianças”.

O relatório não revela a nacionalidade, mas segundo Inga-Britt, trata-se de outro escândalo envolvendo soldados uruguaios. Os soldados que aparecem no vídeo vazado em setembro foram repatriados e estão presos, mas segundo a sueca no caso precedente o OIOS retirou-se formalmente da investigação conduzida pelo Uruguai por desaprovar os “métodos”.

“O país que contribui com tropas havia designado um dos oficiais do contingente na Minustah para liderar a investigação; mas como a metodologia não alcançava os padrões do OIOS (por exemplo, as testemunhas assinavam registros de entrevistas em branco antes de fazerem as entrevistas), os investigadores do OIOS se retiraram da investigação”, diz o relatório

Embora o comando militar brasileira na Minustah seja visto como bastante bem-sucedido, como vereamos adiante, Inga-Britt deixa claro que é responsabilidade dos comandantes brasileiros fazer com que os soldados respeitem a norma pétrea dos boinas azuis: prostituição, não. “Você tem um monte de homens jovens chegando em um lugar isolado, com uma população muito pobre, e essa situação é muito arriscada, então há uma responsabilidade muito forte do comandante militar e do comandante de cada contingente para evitar”.

ENTREVISTA: Inga-Britt Ahlenius

Inga-brittA sueca Inga-Britt Ahlenius fez sua reputação como auditora-geral do governo Sueco, depois de ocupar cargos no Ministério do Comércio e da Indústria e no Ministério das Finanças. Em 2003, foi auditora-geral no Kosovo pós-guerra e conselheira da Comissão Europeia para prevenção de fraudes.

Em julho de 2005, assumiu como chefe do escritório de controle interno da ONU (OIOS) – responsável por investigar desde fraudes até denúncias graves contra as forças de missão de paz – onde permaneceu até 2010.

Ao deixar o cargo, publicou um polêmico relatório de 50 páginas em formato de auditoria. Nele, condenava severamente o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moonm por tentar evitar a transparência na organização. No começo do, publicou um livro criticando o secretário-geral, disponível apenas em Sueco.

“Sua atuação foi de nula a negativa”, disse ela em entrevista à Pública na qual contou as principais dificuldades para investigar e punir soldados de missão de paz como a do Haiti: “É raro que as descobertas que fazemos contra os soldados sejam levadas a cabo”.

Durante o período em que você esteve à frente do OIOS, que tipo de abusos cometidos pelas tropas de forças de paz o escritório investigou?

Isso é uma questão de como você define as responsabilidades. Nós perseguimos muitos casos referentes a abusos contra menores. Quando falamos de prostituição, quase sempre acaba sendo algo sob a responsabilidade do chefe da missão. Nós tomamos conta dos casos mais graves.

Quais os principais problemas para investigar e punir os soldados acusados de abusos, seja contra menores ou prostituição em troca de alimentos, por exemplo?

Há uma complicação que são os acordos com os países que contribuem com soldados. Eles têm a responsabilidade primordial de conduzir e concluir uma investigação. Houve um caso no Haiti, quando eu era diretora do OIOS, em que os soldados envolvidos eram uruguaios, e a nossa conclusão foi que a investigação não foi conduzida da maneira apropriada. O único caso bem-sucedido que eu me lembro foram as autoridades do Sri Lanka, que agiram rapidamente e tivemos uma boa cooperação. Nós fizemos uma primeira investigação e depois eles nos pediram auxílio para ficamos como assistentes na investigação deles. As autoridades do Sri Lanka agiram rapidamente: os soldados foram repatriados rapidamente e passaram por uma corte marcial. O Sri Lanka pediu a nossa ajuda, e nós colaboramos para a instrução do processo. Mas é o único caso que eu conheço em que as descobertas do relatório foram levadas a cabo.

Geralmente não é assim?

Não. Se você finalmente consegue realizar a investigação, é raro que as descobertas sejam levadas a cabo. Muitas vezes enviamos pedidos de informação depois dos soldados serem repatriados e não obtemos resposta. Essa é a coisa mais importante, é o grande ponto fraco para o chefe de investigação do OIOS. Não podemos conduzir uma investigação completa a menos que haja um reconhecimento formal por parte do país contribuinte de que eles querem transferir essa responsabilidade para nós. É uma enorme preocupação em relação à integridade das investigações. Também há o problema de alta rotatividade. Os soldados só ficam no país por 6 meses e muitas vezes são repatriados antes que a investigação preliminar da ONU no local possa ser concluída. O contingente vai embora e chega outro. Então se eles estão sendo investigados, podem escapar facilmente. É muito mais difícil haver uma prestação de contas adequada.

Qual seria a solução?

O problema é que a ONU não tem nenhum poder legislativo formal para aplicar o resultado de tais relatórios, isso fica a cargo do estado-membro da ONU. Então o procedimento mais efetivo seria se houvesse um processo político que permitisse à ONU aplicar a lei.

Um alto militar brasileiro afirmou que em 2004 dois soldados brasileiros foram repatriados por serem acusados de estupro – mas isso não foi noticiado em lugar nenhum. Você soube desse caso?

Alguns casos nunca chegaram ao meu conhecimento porque os soldados são simplesmente mandados para casa e se evita uma denúncia formal. Se esse caso for verdadeiro, é um indício disso. Mas veja, nosso procedimento de investigação é muito criterioso, o OIOS não age com base em fofocas, todas as denúncias têm que ser verificadas e substanciadas para serem consideradas sérias o bastante. É uma responsabilidade muito séria.

No caso de abusos por parte de tropas de outras nacionalidades no Haiti, de quem é a responsabilidade?

O chefe da missão tem a responsabilidade geral sobre a missão, e o chefe militar tem a responsabilidade por todos os soldados. Contingentes diferentes têm culturas diferentes, então depende muito do chefe. Na mesma nacionalidade, você vai encontrar bons e maus contingentes. Mas tem que haver uma relação e contato muito forte entre o chefe da missão, o comandante militar e os chefes de contingente. Os chefes têm que informar os soldados sobre as regras da ONU – por exemplo, que a prostituição é proibida pela norma das missões de paz. Se o comandante militar é brasileiro, ele é responsável por garantir que cada líder do seu país informe os soldados sobre as regras.

Os casos de prostituição e abuso são comuns nas missões de paz? Devemos esperar que elas ocorram?

Eu não diria isso. Mas no caso de prostituição, você tem que ser realista. Você tem um monte de homens jovens chegando em um lugar isolado, com uma população muito pobre, e essa situação é muito arriscada, então há uma responsabilidade muito forte do comandante militar e do comandante de cada contingente para evitar que haja prostituição.

Ao deixar o escritório de supervisão interna (OIOS), você fez um relatório de auditoria em que acusava a gestão de Ban-Ki-Moon de ser contrário à transparência que ele dizia defender. Que eventos te levaram a essa percepção?

Bem, isso não é uma percepção, eu dei muitas provas no meu relatório sobre o fato de que ele estava agindo para minar a independência do OIOS. Um exemplo foi a indicação do Robert Appleton como diretor de investigações. O secretário-geral não tem a autoridade de designar alguém para esse cargo. Mas o escritório do Ban Ki-Moon deu uma série de argumentos técnicos para ser contra a minha indicação, disse que não havíamos considerado necessariamente as mulheres para as vagas. Appleton conduziu a força-tarefa que investigou o escândalo de “comida por petróleo” no Iraque de uma maneira belíssima, que levou inclusive à demissão de diversas pessoas e à condenação de um oficial nos EUA. Mas o secretário-geral levou essa indicação do Robert como uma possível influência na sua própria autoridade. Era claramente uma situação em que ele não queria que agíssemos para monitorar o seu poder. E essa é uma maneira muito primitiva de exercer autoridade.

Leia também:

HAITI: ‘Aba Minustah’

Parte II: O papel do Brasil é ‘impor a paz’

 

 

 

 

 

 

Fonte: A Pública

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