O texto abaixo foi publicado no blog Que Tal Um Cafezinho? O pai do garoto cuja história é contada acaba de lançar um livro sobre o episódio.
Treze anos atrás, uma família se via em uma das piores situações que os pais podem passar: enfrentar a morte de um filho. Ouvia da equipe médica que a criança, de dez anos, estava evoluindo para a morte cerebral. Paulinho caíra de uma altura de dez metros, no prédio onde morava, passara por uma cirurgia craniana e o quadro piorara. A dor que os pais sentem em um momento como este é impossível de se descrever e, mesmo assim, conseguiram ter a serenidade para doar os órgãos do menino pelo simples desejo de ajudar outras crianças. A dor dilacerante que sentiam por perder um filho amenizou ligeiramente, mas durou pouco, até descobrirem que Paulinho, na verdade, não estava morto. Fora sedado e os exames rasurados para falsificar a morte cerebral. Ele fora assassinado visando a retirada dos órgãos.
A familia ficou em pedaços. De um lado, uma mãe devastada pela dor. Do outro, um pai obstinado em conseguir a justiça pela morte do filho e, no meio, uma menininha de seis anos, filha mais nova do casal, órfã de irmão que, apesar da pouca idade, sabia muito bem o que estava acontecendo. O que era de se esperar não aconteceu. Ninguém se uniu a eles na luta contra uma máfia que mascarara a morte de uma criança para conseguir órgãos frescos e valiosos. Ninguém! Mas muitos correram para defender os médicos, “injustamente acusados” de vender os pedaços de uma criança. Em um dos muitos depoimentos que compõem o inquérito policial do caso, a mãe da criança que recebeu as córneas afirmou que “doou” quinhentos reais para a equipe médica. Mas nem isso importou. Dezenas, centenas de pessoas aderiram à campanha de solidariedade à equipe médica! Equipe respaldada por políticos e membros honoráveis da sociedade. A família? Quem se importava com ela? Ninguém quer ficar contra pessoas de poder.
Quanto mais a Polícia levantava provas de um escândalo no Sistema de Transplantes (a Polícia Federal, porque a civil local dissera não haver nenhuma irregularidade), mais a pressão sobre as autoridades aumentava. A bola de neve tinha que parar de rolar, então, para cada prova encontrada, eram dezenas de entrevistas na mídia local desmentindo o fato. O pai nunca se intimidou. Bateu em todas as portas, da imprensa nacional a políticos e advogados. E, uma a uma, elas foram se fechando para ele.
Por fim, o Ministério Público ofereceu denúncia de homicídio doloso envolvendo quatro médicos. Mas não era suficiente. Não foram apenas quatro médicos envolvidos e os principais tinham ficado de fora da denúncia. Mais uma vez, o pai exigiu, brigou e denunciou a conivência da justiça com o crime. Ele conseguiu apenas com que abrissem alguns processos criminais por calúnia e difamação contra ele! Mas nada contra os médicos inocentados. E, mais uma vez, ele não desistiu. Alguém tinha que fazer alguma coisa, alguém tinha que mudar o quadro das denúncias e acrescentar os médicos que faltavam e, mais uma vez, a resposta ao seu apelo foi inesperada. O assessor o Ministro da Justiça na época lhe disse “vou ver o que posso fazer, mas dependendo de em quem esbarrar, eu só posso lhe dizer uma coisa: reza!”
Mas Deus não estava na sua lista de recursos, então, ele continuou. Encontrou alguém que o ouvisse, em Brasília. Levou documentos, provas e arquivos que enchiam uma mala ao Congresso e dois Deputados o atenderam e decidiram que os casos poderiam gerar uma CPI do Tráfico de Órgãos. Sim, os casos, no plural, porque enquanto investigava a morte de Paulinho, a Polícia Federal descobriu provas da mesma prática em outros oito casos!
Mas nem mesmo a CPI foi fácil de ser instalada. Deputados médicos amigos dos envolvidos começaram mais uma pressão contra a investigação. Foram necessários seis meses de intensa luta para neutralizar os efeitos contrários que a bancada dos “pró-medicos” fazia. Finalmente, em 1º de Abril de 2004 a CPI começou.
A comissão de inquérito durou oito meses e, no final, recomendou a inclusão dos médicos no processo pela morte de Paulinho e vários outros procedimentos para melhorar a transparência na doação de órgãos no país. Nada, porém, foi colocado em prática. Quase um ano e meio de trabalho por nada. O Ministério Público engavetara todas as recomendações do relatório final da CPI e a justiça nunca incluiu os médicos no processo da morte de Paulinho. Eles só não se cansaram de perseguir o pai do garoto. Intimações se acumulavam sobre a sua cabeça e ele sempre fora, sozinho, defender-se perante os juizes. E, uma a uma, as acusações contra ele foram caindo por terra.
Uma das últimas intimações fora estarrecedora. O Ministério Público determinava que o pai do garoto fizesse um exame de sanidade mental. Qual seria o próximo passo? Falsificar o resultado do exame e meter o pai em um manicômio? Esta era uma resposta que ele não queria esperar para ver. Decidiu, então, pedir asilo político em um outro país. Escolhera a Itália por ser descendente de italianos e, em 2008, deixou o Brasil.
Enquanto esperava a decisão do governo italiano, ficou em regime semi aberto em um centro de acolhença por quase quinze dias, de onde podia sair durante o dia, mas tinha que voltar no final da tarde. Dividia o quarto com um paquistanes e dois nigerianos. A decisão, embora inédita no país, fora favorável. Paulo Pavesi foi o primeiro brasileiro a receber asilo humanitário na Itália e pôde, finalmente, começar uma nova vida livre de ameaças! Mas a dor da perseguição e da injustiça nunca se apagariam. Chegou a participar de um documentário para o cinema, na Itália, sobre tráfico de órgãos humanos. H.O.T – Human Organ Traffic já ganhou vários prêmios pela Europa.
A crise econômica o fez se mudar temporariamente para Londres. Enquanto organizava a nova vida, Paulo foi informado que, finalmente sua voz fora ouvida. Após treze anos da morte do seu filho, após o divórcio da mãe de Paulinho, após ter que ver a exumação do próprio filho e um pedido de asilo no exterior, o juiz responsável pelo processo da morte de Paulinho determinou que os médicos protegidos sejam incluídos por retirada ilegal de órgãos. A decisão veio junto com a condenação de quatro médicos por homicídio em um dos oito casos levantados durante a investigação da Polícia Federal (dois deles, agora, estao inclusos no processo de Paulinho).
A vitima fora largada no hospital para que o seu quadro piorasse e evoluisse para uma morte cerebral visando a retirada dos órgãos, afirma o juiz. No caso do Paulinho, segundo a denúncia, todos os atendimentos que poderiam ajudar a reverter o quadro crítico foram suspensos. Não muito diferente do que fizeram com o outro doador. Pelo jeito, uma prática comum desta equipe médica. Comum, leviana e despreocupada. Esta nova vítima fora abatida um ano após a morte de Paulinho, quando as investigações estavam em pleno vapor!
Um misto de revolta, dor, satisfação, tristeza e angustia invadiu corpo, mente e coração deste pai que nunca parou de lutar, embora já tivesse parado de acreditar. “Esta morte poderia ter sido evitada se o Ministério Público tivesse ouvido as minhas denúncias e afastado os médicos dos transplantes. É muito triste saber que uma morte poderia ter sido evitada!”… Estas foram as primeiras palavras dele quando soube da sentença. Eu sei, porque estava ao seu lado, como tenho estado nos últimos anos.
Paulo Pavesi é meu marido, o homem de quem sempre tive orgulho de estar ao lado, quem eu sempre defendi e sempre defenderei, não somente quando o vento sopra a favor. Paulo Pavesi é exemplo de uma determinação única, de um pai que colocou a busca pela justiça à frente da sua própria vida. Esta condenação não nos deixa feliz. Como um assassinato pode deixar alguém feliz? Mas, pela primeira vez em treze anos, alguém afirma que todas as denúncias que este pai vem fazendo são verdadeiras.
Vão tentar desqualificar o juiz, desacreditar a sentença ou até afastá-lo do tribunal da cidade, já que ele ainda vai julgar o caso do Paulinho e das outras sete vítimas. Mas não importa. Sempre saberemos qual é a verdade, que não pertence mais somente a nós. Agora, muitos já sabem e começam a acreditar.
Este é um desabafo em homenagem às pessoas que sofreram direta ou indiretamente durante todos estes anos: Paulo, Rosângela (mãe de Paulinho), Adriana (irmã de Paulinho), Cléo (irmã de Paulinho), Marcelo e Marina (meus filhos).
Fonte: DCM