Em 12 de agosto de 1798, ou seja, há exatos 222 anos, iniciava em Salvador uma tentativa de revolução democrática e popular, reunindo escravizados, soldados e trabalhadores como ourives, artesãos, pedreiros e alfaiates. Inspirados nos ideais de liberdade e igualdade que haviam derrubado a monarquia francesa em 1789, os revoltosos baianos pretendiam um levante contra o poder colonial português, a proclamação de uma república e o fim da escravidão.
A Revolta dos Búzios, como foi definitivamente nomeada pelo seu caráter racial, mostrou-se mais radical nos propósitos de independência do Brasil e mais republicano do que a Inconfidência Mineira, de 1789, porque trazia os anseios das classes subordinadas do Brasil colonial, incluindo na liderança negros e mestiços que sofriam discriminação social e racial, como os escravizados, trabalhadores explorados e os soldados que não conseguiam promoção por causa da cor.
Ao longo da história, o movimento ganhou diversas denominações como Conjuração Baiana, Sedição dos Mulatos, Conspiração Republicana e Revolução dos Alfaiates, mas ainda não mereceu o devido reconhecimento da relevância pela ruptura que propunha. Contudo, já há uma rica produção de historiadores dedicados a este acontecimento, bem como ações de visibilidade por parte de movimentos sociais e do poder público, como a inscrição de quatro mártires da revolta no livro dos heróis da pátria, fato ocorrido somente em 2011.
Em Salvador, é possível se deparar com o nome dos principais líderes em denominação de ruas ou com seus bustos reunidos na Praça da Piedade, centro da cidade. O local foi o palco para a execução da sentença de condenação por parte da Coroa portuguesa: quatro líderes enforcados e esquartejados, tendo suas cabeças expostas em pontos de destaque, para desanimar outras tentativas de insurgência. Em 2019, a Câmara Municipal de Salvador definiu a data de 08 de novembro como Dia Municipal em Memória dos Mártires da Revolta dos Búzios, em alusão à data da condenação, em 1799.
Contribuição enorme para a valorização da revolução de 1798 também tem sido dada por organizações do movimento negro e pelos blocos afros de Salvador, dispostos sempre a cantar em versos, contar em livros e publicações didáticas os sonhos de união e libertação da Revolta de Búzios. São inúmeras as canções do Ilê Aiyê ou do Olodum que citam João de Deus, Luis Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas e Manuel Faustino e suas estratégias revolucionárias.
Amanheceu doze de agosto
Ano de mil setecentos e noventa e oito
A ordem expressa pelas ruas da cidade
Traziam-nos ventos da França
Clamando República e Fraternidade
Luiz Gonzaga, João de Deus, Manoel Faustino
E Lucas Dantas padeceram
Foram enforcados, esquartejados
Na Praça da Piedade por serem afros informados
Olodum quer liberdade, Igualdade e ser feliz
Fraternização, música de Adailton Poesia e Valter Farias, campeã do Festival Revolta dos Búzios Olodum, 2005)
Em 2018, o cineasta Antônio Olavo proporcionou uma reparação histórica ao lançar o longa-metragem “1798: Revolta dos Búzios”. O roteiro do filme foi extraído dos “Autos da Devassa”, com mais de duas mil páginas que detalham minuciosamente o processo contra os insurgentes. Antônio Olavo já havia dado outras contribuições para o resgate da história de resistência no Brasil com os filmes: Paixão e Guerra no Sertão de Canudos (1993), Quilombos da Bahia (2004), Abdias Nascimento Memória Negra (2008) e A Cor do Trabalho (2014).
O filme vem somar-se a produções acadêmicas como os livros clássicos da historiografia baiana de Luis Henrique Dias Tavares e de Kátia de Queirós Mattoso; as cartilhas e publicações organizadas pelo historiador Ubiratan Castro de Araújo, quando à frente da Fundação Pedro Calmon da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (2007-2013), a revista em quadrinhos organizada pelo bloco Olodum, com ilustração de Maurício Pestana – todos fontes para este texto – entre outros materiais que possibilitam a divulgação da história da Revolta de Búzios, especialmente no campo educacional.
Animai-vos povo bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que seremos todos irmãos, tempo em que seremos todos iguais.”
Esta é uma das frases que foram espalhadas pela cidade de Salvador, em 1798, em panfletos e em boletins, passados sorrateiramente de mão em mão ou colados nos casarões, conclamando o povo a sonhar com a justiça e a igualdade e a lutar por este sonho.
Essa é a matriz dos textos produzidos pelas escritas de libertação, sejam na imprensa negra abolicionista ou dos primeiros anos da república; nos jornais do Movimento Negro Unificado; nas cartilhas de educação de blocos afro e escolas de samba; nos cadernos da literatura afro-brasileira; e nas mídias antirracistas que se proliferam a partir do ambiente digital.
Impeachment de Bolsonaro
Quiseram os ancestrais ideias de Justiça que o dia 12 de agosto de 2020, fosse o escolhido para que a Coalizão Negra por Direitos, frente que reúne centenas de organizações do movimento negro brasileiro, apresentasse à Câmara Federal um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro.
O documento é assinado por 600 entidades e diversas personalidades, negras e não negras, como Sueli Carneiro, Vilma Reis, Bianca Santana, Emicida, Dexter, Salgadinho, Rappin Hood, Chico Buarque, Nando Reis, Douglas Belchior, Silvio de Almeida, Antônio Pitanga, Fábio Porchat, Antonio Tabet, Fernando Meirelles, Aranha, Sidarta Ribeiro, Bel Coelho, entre outros.
A Coalizão Negra por Direitos denuncia como crimes de responsabilidade o trato do presidente com a pandemia do novo coronavírus, que já vitimou mais de 100 mil brasileiros, em sua maioria, negros e negras das periferias do país. Para a Coalizão, faltaram medidas emergenciais voltadas à população negra e grupos dentro dela, como trabalhadores informais, comunidades quilombolas, trabalhadores rurais, populações carcerárias e moradores das favelas.
“No Brasil, as mais de 100 mil mortes por covid-19 têm cor, classe social e se estão em territórios de maioria negra. Os impactos sociais da pandemia, o desemprego e desamparo por parte do governo atingem sobremaneira os mais pobres”. O documento exige que o Congresso Nacional construa a defesa da democracia em conjunto com a sociedade.
222 anos depois da Revolta de Búzios, o Brasil ainda se insurge por uma democracia de justiça e igualdade social. O projeto revolucionário de Búzios ainda está em construção!
Fontes:
Revolta dos Búzios – Uma História de Igualdade no Brasil. Realização Olodum. Texto, Roteiro e Arte: Maurício Pestana, São Paulo, Pestana Artes e Publicações: 2009;
Bahia, 1798. Texto de Luis Henrique Dias Tavares. Ilustração de Cau Gomes. Salvador, Egba: 2010;
Heróis Negros do Brasil – Bahia, 1798, A Revolta dos Búzios. Fundação Pedro Calmon. Salvador, Egba: 2011.
1798 – Revolta dos Búzios. Filme de Antônio Olavo. Portfolium, 2018.