“Pedro Bial e a relativização do racismo”

Enviado por / FonteAdriano Nunes, do Maltanet

Não me vou alongar nesta crítica. Ao assistir à entrevista de Xuxa para Pedro Bial, uma passagem me intrigou e pôs-me à reflexão. Bial diz que “eu acho também que as pessoas não podem olhar uma época com os olhos de outra. Você não pode olhar a década de 80 com a ótica de 2020. Aí, olhar para Monteiro Lobato e dizer “Monteiro Lobato foi isso, foi aquilo”, não… Monteiro Lobato foi genial, mas ele expressara o pensamento de uma época, ele estava vivendo dentro daquela época, é muito fácil depois ficar condenando…”

Então, Bial, nós dois estamos na mesma época, e eu tenho uma visão diferente da sua. Como explicar, em 2020, eu e você estarmos dentro da mesma época, e eu não concordar com esse seu argumento? Se fosse como você retoricamente argumenta, haveria um determinismo e uma socialização dos quais, inevitavelmente, eu não escaparia. Pois bem, seguem algumas objeções críticas sérias às suas alegações relativistas quanto ao racismo de Monteiro Lobato:

1. Sim, as pessoas podem olhar para qualquer época com o pensamento da sua época, principalmente para criticar a época diferente e, de algum modo, tentar compreender o porquê de ela ter sido daquele jeito e não de outro e o porquê de que algumas pessoas pensavam e agiam, por exemplo, como Monteiro Lobato, e outras não.

2. Se o seu argumento fosse correto, então eu não poderia olhar para os horrores do nazismo e do comunismo stalinista. Diria simplesmente “expressaram um pensamento da época” e os aceitaria como uma “normalidade” temporal. Ou sequer criticar por que até 1990 a homossexualidade era considerada uma doença pela OMS. Não preciso mais sequer ir adiante aqui.

3. A genialidade de Monteiro Lobato não é capaz de desculpar o racismo de Monteiro Lobato. Você deve saber bem que há provas inafastáveis de que ele era racista e que até vontade de criar uma KKK aqui teve. Heidegger era um gênio. Carl Schmitt também era. Eram nazistas e racistas. Foram até o fim de suas vidas. Nunca se desculparam por isso. Hannah Arendt, Karl Jaspers e tantos outros eram da mesma época de ambos e não tinham o pensamento deles, não simpatizaram com as ideias racistas e totalitárias do nazismo do NSDAP.

4. Sim, concordo com você, é muito fácil ficar condenando. Mas também é muito fácil relativizar horrores, racismos, preconceitos. A relativização serve a interesses, sejam políticos, partidários, de classe, de raça, intelectuais, sociais, etc e tal. Vou dar um exemplo de relativização por interesse político: durante a Segunda Guerra Mundial, Klaus Barbie foi nomeado chefe da Gestapo para a cidade de Lyon, na França ocupada. Lá, de 1942 a 1944, praticou violências várias, de torturas a assassinatos, além de enviar membros da resistência francesa e judeus para campos de extermínio. Findada a guerra, conseguiu escapar. À revelia, foi condenado à morte, em 2 julgamentos (1952/1954), por crimes de guerra. Onde estava? Por que neste período realmente não foi preso? Descobriu-se, depois, que ele foi contactado, pelo Serviço Secreto da Contrainteligência dos EUA, para servir de interesses políticos aos EUA, como informante do “avanço comunista” na Europa. Ora, os mesmos americanos que antes levaram vários nazistas à condenação, agora protegiam um cruel assassino nazista que cometera crimes contra a humanidade. E mais: esse auxílio, essa proteção e tal colaboração se deram até 1951, isto é, antes da primeira condenação! Pouco? Em 1957, os EUA facilitaram um favor último: conseguiram um visto de imigração para a Bolívia (Klaus se naturalizaria boliviano em 1957 com o nome de Klaus Altmann), onde ficou protegido sob a ditadura de Hugo Banzer até meados de 1982. Sim, os relativismos podem servir a muitos interesses.

5. Ainda que a maioria das pessoas venha a expressar um pensamento de uma época, ser socializada com tais práticas, ações e discursos, outras pessoas não são. Então, não resta dúvida de que as pessoas podem e devem refletir sobre a própria época. Na época de Aristóteles, havia pessoas que criticavam a escravidão. O sábio de Estagira defendeu a escravidão como algo inerente à natureza. Depois, perto da morte, parece ter-se arrependido. Na época de Monteiro Lobato, existiam muitas pessoas racistas sim. Mas justifica ser racista por causa disso? Como explicar então os que não eram? Justifica ter o racismo relativizado por causa disso ou por se ser um gênio da época? Penso que não! Estamos todos na esfera humana, somos passíveis de erros graves. Todavia, essa mesma esfera nos abre horizontes para pensarmos o mundo em que vivemos, a época em que estamos dentro, mas nunca a ambos presos in totum. Abraço.

Adriano Nunes

+ sobre o tema

para lembrar

#GeledésEsportes: O futebol brasileiro perdeu sua característica, ele está acadêmico

Geledés continua uma séria de vídeos sobre esporte no...

Pelo menos sete em cada dez jovens conhecem alguém que sofreu racismo, diz pesquisa

Questionário também mostrou que metade dos jovens entrevistados conhecem...

Os desafios da comunidade negra

Adney Araújo de Abreu, nascido em São Paulo, na...
spot_imgspot_img

Filme de Viviane Ferreira mescla humor e questões sociais com família negra

Num conjunto habitacional barulhento em São Paulo vive uma família que se ancora na matriarca. Ela é o sustento financeiro, cuida das filhas, do...

Quem tem direito de sentir raiva?

A raiva, enquanto afeto humano, legítimo e saudável, é um tema que estou tentando colocar na sociedade brasileira, no debate público, mas encontro tantos...

Quanto custa a dignidade humana de vítimas em casos de racismo?

Quanto custa a dignidade de uma pessoa? E se essa pessoa for uma mulher jovem? E se for uma mulher idosa com 85 anos...
-+=