Pela busca do Imponderável, por Sueli Caneiro

Para Michel Foucault, depois do século 19 assiste-se a processo de esclerose dos grandes partidos políticos. Eles teriam deixado de se constituir espaços de criação política para reduzir-se em estratégias mais ou menos toscas de tomada ou permanência no poder. Ocorre, conforme ele, uma forma de “confisco da política”.

Por Sueli Carneiro , do Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Diante do amesquinhamento da atividade político-partidária, restaria para a sociedade a resistência, expressando-se ela na capacidade de preservar os valores emancipatórios por ela produzidos sobretudo nas décadas de 60 e 70 do século 20 nos quais se encontravam implícita a possibilidade de recriar a existência para além dos programas partidários e sua normalização da atividade política e a conseqüente produção de sujeitos políticos viciados e subjugados aos imperativos do poder.

A perda da capacidade de criação política, os limites impostos pelas grandes agremiações partidárias à renovação das idéias e práticas no campo político fizeram com que, segundo Foucault, se deslocasse para os movimentos sociais a produção de idéias e valores que foram efetivamente capazes de transformar as nossas vidas. Movimentos sociais como os feministas, de homossexuais, dos grupos étnicos raciais, ambientalistas entre outros re-significaram grandemente os nossos estilos de vida. Com eles constituimos e redefinimos direitos e valores no plano da sexualidade, da racialidade e da etnicidade, na área ambiental, transformando a nós mesmos, as agendas partidárias e mentalidades na sociedade abrangente.

Movimentos sociais que, por força do poder de transformação sobretudo cultural tornaram-se também alvo da cooptação das grandes agremiações políticas, que, em certos casos, lançaram sobre alguns uma espécie de mortalha pela domesticação e subordinação de suas pautas aos seus interesses menores – a simples tomada e perpetuação no poder. Transformando parcelas desses movimentos sociais, de agentes de transformação em correias de transmissão de interesses de outros; em sujeitos políticos subalternos e, em alguns casos, em adversários dos que permanecem, no campo da resistência, na posição de autonomia, de independência e crítica em relação aos diferentes matizes dos descaminhos do poder.

Faz-se então necessário, especialmente neste momento para os que mantêm a liberdade de sonhar os próprios sonhos, resgatarem a iniciativa política. O que está em jogo é, como nos diz Foucault, assegurar a existência, “fora dos grandes partidos políticos (…), certa forma de inovação política”.
Para isso é hora de relembrar nossos feitos como movimentos sociais para que possamos, do interior das próprias lutas, reencontrar novas formas de reencantamento dessas lutas, resgatar as nossas agendas emancipatórias e, com elas, romper com a perplexidade e frustrações que caracterizam a conjuntura atual. Se as crises são também oportunidades, estamos diante de extraordinária oportunidade de avanço na democracia, em que a falência das corporações políticas tradicionais impõe, pelo desencanto, a reconquista da autonomia, a recusa da tutela, a ingenuidade de delegar a outros a salvaguarda de nossos sonhos. Resgatando a condição de artífices, sujeitos de projetos libertários que se situam no âmbito e, sobretudo, para além dos limites dos discursos programáticos.

Nessa perspectiva, resgatar a noção de esfera civil, de sociedade civil, revisitar os conceitos e pensadores que aportaram a esse tema torna-se imperativo. Quanto mais formos capazes de mudar, recriar as nossas práticas políticas como movimentos sociais, mais seremos capazes de transformar as práticas das agremiações institucionalizadas, já que elas expressam, em certo nível, os pequenos e grandes consentimentos, as tolerâncias da sociedade com o desvirtuamento ou traições de compromissos e promessas.

Nesse sentido, somos todos responsáveis, por ação ou omissão. Então faz-se necessário recuperar a nossa capacidade de indignação, transgressão e criação no fazer político, na busca da construção de uma sociedade civil liberta de seus compromissos históricos com as hegemonias políticas e econômicas porque, como afirma Milton Santos, “as classes chamadas superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos. E isso é dado essencial do entendimento do Brasil: de como os partidos se organizam e funcionam; de como a política se dá, de como a sociedade se move.” (Santos, 2001)

Em assim sendo, está a classe média também diante da oportunidade de redenção. De abandonar o papel histórico e assumir o necessário protagonismo para o avanço democrático demarcando sua autonomia em relação às estratégias dos poderes hegemônicos de quaisquer matizes em prol da conquista da cidadania para todos. São dessas condições que depende fundamentalmente o avanço da democracia e a moralização da vida pública, pois, como afirmou Foucault, “não são essas velhas organizações políticas tradicionais e normais que permitem esse exame”.
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