Pela estrada afora

Viajar sozinha pode ser uma deliciosa aventura, uma ponte para o autoconhecimento e, em alguns momentos, uma cilada. Algumas mulheres contam o melhor e o pior de um voo solo

Quando a mulher conta aos amigos ou parentes que viajará para outro continente sozinha, a franzida de cenho é uma constante durante o interrogatório que se segue: “Por quê?”, “Tá louca?”, “Não tem medo?”. Vacinada, a viajante solo — o termo viajante solitário caiu em desuso no meio turístico — guarda uma resposta pronta diante do preconceito do indagador. “Porque eu adoro a minha própria companhia” é a reposta padrão da escritora especializada em roteiros de viagem e autora do livro Sozinha mundo afora (Ed. Verus), Mari Campos. Ela se acostumou a responder a essas perguntas cada vez que prepara o roteiro de uma aventura internacional.

A reação de preocupação e surpresa é sintomática. Reflexo de como até hoje ronda sobre o sexo feminino a imagem frágil e exposta da mulher que precisa de proteção — e que não sabe se defender. Mas essas destemidas não são exceções. Informações da rede de albergues Hostelling International dão conta de que, atualmente, existem mais mulheres viajando sozinhas pelo mundo do que homens. A Associação Brasileira de Albergues da Juventude aponta que mais de 80% das mulheres que se hospedaram nos albergues associados estavam sozinhas. Tantas viajantes reforçam uma tendência: elas não só se jogam no mundo, como gostam de estar sós em suas caminhadas. Algumas dessas mulheres contam casos e causos vividos nas empreitadas fora do país.

Perrengues e amores

Com 12 anos de idade, Ivone Lopes entrou em um ônibus sozinha e partiu rumo a Belo Horizonte. Foi assim durante quase todas as férias de sua adolescência. E a cada viagem de pouco mais de 1000km, voltava para casa diferente. O tempo passou, Ivone teve quatro filhos e estar sozinha era raro. Foi só aos 37 anos que decidiu relembrar as antigas viagens solitárias de ônibus — as quais adorava — e decidiu repetir a dose, porém em porções cavalares. Os 1000km se multiplicaram em 18 vezes e Ivone foi parar em Pequim, na China.

Ela não falava mandarim, se virava muito mal no inglês e, depois de uma rápida adaptação ao fuso horário invertido, incorporou a vocação para viajante solo. Aprendeu a arte de se comunicar por mímica e, em pouco tempo, dominava as ruas conturbadas da capital chinesa sobre uma bicicleta que comprou por lá. Seus 30 dias de estreia do longo percurso que faria pelo mundo, porém, não foram só flores. Encarou seu primeiro perrengue internacional, ao qual só se saiu ilesa por ter feitos amigos.

Durante um passeio de bicicleta, simplesmente desmaiou. Um amigo que a seguia em outra bicicleta a socorreu. Por sorte, Ivone não se machucou e, depois de comer alguma coisa, com a pressão arterial em níveis normais, voltou a pedalar numa boa. O susto ficou de lição. Estar sozinha em uma viagem, independentemente do sexo, requer mais cuidados do que ela previra. “Não recomendaria para uma mulher começar a viajar sozinha na Ásia. Para mim, foi maravilhoso, mas pode ser um tanto assustador para quem não está acostumado a estar só pelo mundo”, pondera.

A viagem seguinte trouxe uma nova lição: quando você está só, a chance de se apaixonar e viver um romance torna tudo mais emocionante. Ivone foi visitar um parente na cidade de Washington, nos Estados Unidos. E depois, sozinha, foi “turistar” em Nova York. A prima lhe deu o contato de um conhecido e falou que ligasse para ele. Ivone foi, então, visitá-lo. Na casa, estava hospedado um irlandês, que também não tinha companhia para andar pelas ruas da Big Apple. Não demorou muito e Ivone tinha motivos de sobra para usar a manjada camiseta com os dizeres I love NY. Eles se apaixonaram e curtiram, ao máximo, os prazeres da megalópole. Vez ou outra, ainda se encontram durante as andanças pelo mundo.

Depois da inesperada viagem romântica, foi a vez de se aventurar pela América do Sul. Fechou uma excursão sem conhecer nenhum dos participantes e, de Brasília, seguiu em um ônibus pelas precárias estradas que levam até a Bolívia e o Peru. No trem da morte, na Bolívia, passou por um novo susto. Uma amiga que conheceu na excursão percebeu que Ivone estava muito calada, pálida. Mais uma vez, Ivone havia desmaiado por uma queda repentina na pressão. A amiga a ajudou e, em poucos minutos, estava tudo bem.

Mesmo cercada de amigos, Ivone sempre reservava um tempo para ficar só. “Lembro de sentar na praça, tomar um café sozinha. Um grupo de músicos estava tocando ali perto. É muito gostoso aprender a desfrutar esses momentos que serão só seus.”

Próxima parada: Canadá. Ivone viajou para aprender Inglês. Fez amigos no curso mas, não satisfeita, resolveu seguir num roteiro solitário de 10 dias pelo Alaska. Foi lá que teve a experiência mais profunda de bem-estar, autoconhecimento e plenitude. Depois do descanso, passou por Nova York para visitar seu affair irlândes e voltou para o Brasil.

A última viagem foi para Londres, Lisboa, Índia e Nepal. Tudo em 45 dias, no fim do ano passado. Desta vez, foi com duas amigas que conheceu dois meses antes da viagem. Ivone, agora com 49 anos, encontrou Dalai Lama, passou o réveillon na beira do Rio Gandhi, foi assediada pelos indianos — “se você der bobeira de trocar um olhar, eles te pedem até em casamento” — e, no fim da viagem, deixou as amigas para conhecer novas cidades sozinha. Atravessou para o Nepal, esbarrou com a apresentadora Oprah Winfrey, sobrevoou as montanhas em uma espécie de asa delta, conheceu sozinha o deserto da Índia. Encarou os 45 de viagem, dessa vez, sem apertos. Os filhos, já grandes, incentivam a mãe. “Não é porque você tem filhos que vai se privar de viver esse momentos. Tem apenas que saber dosar”, ensina. A próxima viagem ainda não está planejada. “Normalmente, me dá um estalo e eu vou. É como um chamado para uma nova aventura…”

30 países em 30 anos

viagens-2Flávia Mariano tem apenas 32 anos e já acumula 35 países carimbados no passaporte. Não, ela não viaja desde garotinha, tampouco nasceu em família abastada. Pelo contrário. Nasceu em uma família muito pobre no subúrbio do Rio de Janeiro e passou por todo tipo de dificuldade. A mãe a incentivava a ler tudo o que pudesse e foi assim que, ainda criança, Flávia foi conhecendo o mundo pelas páginas de revistas e livros. Já sonhava em conhecer Nova York sem ao menos saber onde ficava a cidade. Fez faculdade e, aos 24 anos, rompeu um namoro longo. Foi quando decidiu largar tudo e usar o dinheiro que guardou para fazer um intercâmbio de seis meses no Canadá acompanhada por amigos. Voltou ao Brasil e resolveu voltar para o Canadá. Dessa vez, sozinha. “Passei muito aperto, medo, solidão, mas valeu cada minuto”, sentencia.

Flávia decidiu que viajaria o mundo e bancaria as aventuras vendendo textos sobre os locais que conheceu para revistas especializadas. Desde então, viajou com namorados, amigas, família e sozinha. E se impressionou, em suas andanças, com a quantidade de mulheres independentes que faziam viagens solo. Nesse ponto, acredita, as brasileiras são muito atrasadas. “Ainda temos a impressão de que precisamos de um homem ao nosso lado para mostrar que temos alguém na vida. O povo aqui acha que a mulher que viaja sozinha é largada, solitária. No momento, estou no Camboja e como tem mulher viajando sozinha aqui! Supernatural. Além disso, tem muitas asiáticas que viajam com amigas. Senhoras com as filhas também. Vi isso na Índia, Dubai, Camboja. Na Europa, nem se fala!”, conta.

Prestes a fazer 30 anos, e com cerca de 23 países no currículo, Flávia teve uma ideia. Conhecer 30 países antes de completar os 30 anos. Arregaçou as mangas e se jogou no mundo sozinha, mais uma vez. Conheceu a Inglaterra, Bélgica, Suíça, Itália e Luxemburgo. E, por esses países, viveu as dores e as delícias de estar desacompanhada. O lado bom: não ter que ficar negociando o que vai ser feito no dia, pode refletir sobre a vida, fazer novos amigos e, principalmente, “a sensação de ser uma vencedora por estar se virando no mundo”. O ônus porém, também existe. “Em alguns momentos bate uma solidão danada. É o tipo de viagem que você tem que programar muito bem em relação ao tempo que passará em cada local, a programação do dia, a época do ano, os gastos… entre outros cuidados.”

Em Bruxelas, por exemplo, na semana do Natal, estava no aeroporto esperando seu voo para Veneza. Mas uma forte nevasca fechou os aeroportos. O fato de passar a noite dormindo no chão foi apenas um detalhe. “A pior parte foi ver todo mundo em família, preocupado em chegar em casa para o Natal, tendo em quem se apoiar, e eu ali, sozinha. Ninguém me esperava.” Chegou a pensar em desistir do projeto 30 em 30. Mas resolveu sair do aeroporto, encarar o frio cortante e pegar um trem para qualquer outro destino. Conseguiu uma passagem para a Alemanha, por um preço um tanto quanto salgado, mas embarcou ali mesmo, fugindo da sensação de solidão.

Em geral, os problemas são menos dramáticos e quase cômicos. Certa vez, estava ao telefone, em um orelhão na Espanha, quando um rapaz se aproveitou da situação e passou a mão no seu bumbum “com vontade”, como conta. O rapaz saiu às gargalhadas e ela ficou bufando de raiva e xingando o garoto de todos os nomes que lhe vieram na cabeça. No Marrocos, mesmo acompanhada do namorado, foi cortejada por muitos locais. “Me sentia uma estrela. Até versinho um rapaz falou para o meu namorado, dizendo que ele tinha em seu jardim a mais linda flor”, diverte-se.

Para quem está começando, Flávia recomenda uma viagem para a Europa ou os Estados Unidos, porque são locais onde há muitas mulheres viajando sozinha. Mas, ela ensina, este não deve ser o parâmetro para escolha. “Sempre digo que você deve viajar sozinha para o local que realmente enche os seus olhos e permeia os seus sonhos! É esse desejo que vai fazer com que você perca o medo e encare seus fantasmas. Por outro lado, não é porque todo mundo visita o Coliseu em Roma que você tem que ir. A viagem é sua, você está pagando, se não enche seus olhos simplesmente não vá! Use seu tempo e dinheiro para o que você quer fazer! Essa é a grande vantagem de viajar sozinha.” Quem duvida?

Unidas por aí

Papéis de divórcio assinados e a psicóloga Cléo Franco achou que ganharia o mundo. Viu no fim do casamento a possibilidade de sair viajando para onde bem entendesse, com toda a liberdade que, agora, lhe era de direito. Começou com uma viagem para Buenos Aires, depois outra pelo Nordeste, seguida por um passeio a Orlando, Chile, Peru e Barcelona. Porém, o efeito esperado se dispersou rapidamente. E a empolgação deu lugar a um sentimento de solidão, que começou a lhe incomodar durante as viagens. “Em Buenos Aires, um dia fiquei observando grupos de pessoas se divertindo, e comecei a me sentir mal, deprimida”, lembra.

Em todas viagens que se seguiram, tinha devaneios cada vez piores. Daqueles de sentar na cama do hotel e, do nada, questionar se valeu a pena acabar com o casamento. Ainda assim, indica a experiência: “Claro que tem esse lado difícil, mas também é muito bacana, porque você sempre volta diferente, com uma nova visão de mundo. Você questiona mais o que você quer. Acho que viajar sozinha é uma experiência que toda mulher deve ter. Seja em um mochilão ou um resort”, indica.

Ela queria viajar, mas raramente conseguia uma companhia que tinha data de férias e preferência de destinos similares. Foi aí que teve a ideia de tentar reunir grupos de mulheres brasileiras, na mesma situação. Criou o site mulherespelomundo.com e começou a obter um retorno rápido de várias senhoras e jovens que queriam companhia para viajar. A ideia se tornou um negócio e hoje ela administra a agência de turismo oferecendo pacotes para várias partes do mundo.

O processo é simples. A pessoa entra no site e vê as viagens programadas. Caso se interesse por alguma, entra em contato com a agência que, por sua vez, a põe em contato com as mulheres que já compraram o pacote. Elas trocam e-mails, telefonemas e, se moram na mesma cidade, até fazem uma reunião para se conhecerem melhor. O resultado é mais afinidade na hora de encarar a viagem. “A mulherada se diverte muito, fica amiga muito rápido. Porque todo mundo ali está fazendo um grande investimento, então a boa vontade de fazer a sintonia dar certo é muito grande”, acrescenta.

É claro que a integração do grupo não é garantida. Houve um caso de um grupo superanimado que foi para Buenos Aires. Mas uma das integrantes não entrou no clima. Só reclamava, questionava os roteiros que já tinham sido previamente arquitetados e aprovados por todos, fazia birra. “Existem exceções. Esse foi nosso único caso de insucesso. Ela não gostou da viagem, não gostou do grupo. Por isso, vale muito a pena martelar isso para quem vai viajar em grupo: todos ali têm responsabilidade no sucesso da viagem. É preciso estar aberto para a experiência”, diz. O perfil das mulheres que procuram a agência varia: 80% delas tem mais de 40, contra 20% entre 18 e 39 anos.

Leia na edição impressa a íntegra da matéria, com a história de outras viajantes e dicas para você se aventurar em roteiros solo sem cair em ciladas.

 

 

Fonte: Correio Braziliense

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