Adriano Wilkson
Assim que chegou ao Santos, ainda adolescente, Edson Arantes do Nascimento passou a ser chamado de “Gasolina” pelos outros jogadores do time. O apelido se referia à cor da substância que dá origem a esse combustível, o petróleo, negro como a pele do recém-chegado. E ficou vivo tempo suficiente para Edson pensar que seria assim que ele ficaria conhecido no mundo do futebol.
A imprensa paulista preferiu chamá-lo de Pelé, apelido cunhado durante sua infância em Bauru. Mas na Copa de 1958, seus companheiros começaram a chamá-lo de outra coisa: Alemão. Era uma ironia que marcava a clara oposição entre o seu tipo físico – e a cor de sua pele – e o dos atletas europeus.
O “Alemão” foi abandonado ainda na Suécia, mas Pelé continuaria a ser chamado, ao longo da carreira, por outras palavras que remetiam à cor de sua pele, como se essa característica física fosse definidora de sua personalidade. “Crioulo” é o termo que mais aparece nos jornais dos anos 60 em referência a ele. Em geral, a palavra foi usada de maneira intencionalmente afetuosa, embora seu uso exponha um discurso que define socialmente uma pessoa negra a partir da cor de sua pele.
Quando a seleção brasileira conquistou seu primeiro título mundial, Pelé foi o personagem principal de uma reportagem da revista Cruzeiro, na qual ele é comparado à figura folclórica do Saci-Pererê. Na mesma revista, um texto que descreve a passagem dos jogadores brasileiros pela Suécia sugere que uma criança loira se assombrou com a presença negra de Pelé e exclamou ao ouvi-lo dizer alguma coisa: “Mamãe, mamãe, ele fala!”. Pelé, assim, é comparado a um animal, cuja capacidade de falar seria uma surpresa.
O sociólogo Muniz Sodré, especialista em estudos sobre a mídia, vê “nesses enunciados depreciativos” sobre Pelé a ética que mostra “o diferente do paradigma branco-europeu como um ‘inumano universal’ ou como uma outra espécie biológica não plenamente identificável como humana.”
Mesmo já considerado o maior jogador do século e inspiração para milhões de negros no mundo todo, Pelé nunca se engajou na luta antirracista e chegou a ser cobrado por isso ao longo da carreira.
Há duas semanas, ao comentar o enfrentamento do goleiro Aranha ao racismo sofrido durante um jogo, Pelé disse que o santista se precipitou. Segundo Pelé, se ele tivesse parado todo jogo em que algum torcedor o chamasse de “macaco” ou “crioulo”, teriam que ser interrompido todos os jogos de que ele participou.
De acordo com Angélica Basthi, autora de Pelé: estrela negra em campos verdes, uma biografia que foca a relação do jogador com a questão racial, o fato de ele ter reconhecido ter sofrido ofensas raciais em campo é um ponto de inflexão em sua trajetória.
“Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo. É a primeira vez que admite ter sido chamado vários momentos de macaco ou de crioulo em campo”, afirma a pesquisadora. “Pode-se dizer que se trata de um pequeno avanço contar com esse reconhecimento do Pelé no debate sobre o racismo no futebol, ainda que o contexto utilizado por ele não contribua com a luta por igualdade racial. Mais uma contradição resultado do racismo produzido em nosso país.”
Racismo na carne
De acordo com a pesquisa de Angélica, Pelé teve sua primeira experiência com o racismo ainda adolescente, em Bauru, quando começou a namorar uma garota branca. Assim que o pai dela soube do namorico da filha com um menino negro, deu uma surra na garota em público. O relacionamento acabou ali.
Mais tarde, Pelé também enfrentou problemas quando conheceu aquela que seria sua primeira esposa, Rosemeri, branca. “O jovem casal estava proibido de ser visto junto e a sós. Até para irem ao cinema, uma pessoa da família dela os acompanhava. Era uma situação estranha: primeiro chegava Rosemeri, acompanhada de um parente, para a sessão no cinema; só depois de começado o filme, Pelé era autorizado a entrar também. O namoro durou sete anos”, conta a pesquisadora. Ela levanta duas hipóteses para isso. “Ou queriam proteger a filha do assédio por estar se relacionando com um craque famoso, ou tinham dificuldade de aceitar o relacionamento com um jovem negro, ainda que tivesse fama.”
Um dia, durante uma excursão do Santos pela África, Pelé presenciou um momento de tensão racial pelo qual passavam várias nações do continente, que na década de 60 tentavam a independência das metrópoles europeias. No Senegal, a recepcionista branca do hotel onde o time se hospedou chamou de selvagens os negros que tentavam se aproximar dos santistas.
Um policial acabou prendendo a mulher. Ela alegou inocência e pediu para que Pelé testemunhasse a seu favor. O jogador se recusou a defendê-la e disse que se identificava com as pessoas que ela havia insultado. “Estar na África foi ao mesmo tempo uma lição de humildade e uma experiência gratificante. Senti que representava uma esperança para os africanos, como o negro que conseguiria fazer sucesso no mundo”, escreveu Pelé em sua autobiografia publicada em 2006.
Racismo na Copa
A preparação da seleção brasileira para a Copa de 1958 foi marcada pela sombra dos fracassos nos dois Mundiais anteriores. Entre todos os diagnósticos para as derrotas em 1950, em casa, e em 1954, na Suíça, destacava-se a retomada de teorias racialistas em voga no Brasil desde os anos 1930. De acordo com setores da academia, da ciência e da imprensa, a fraqueza da seleção brasileira eram os jogadores negros e mulatos, menos maduros e disciplinados do que os europeus.
Foram os jogadores negros os mais responsabilizados pelo Maracanazzo em 1950 e pela derrota em 1954, depois de uma pancadaria nas quartas de final com os húngaros. De acordo com essa interpretação, negros e mulatos não teriam “fibra” nem sangue-frio para suportar pressões como essas.
Os cartolas responsáveis pela seleção queriam tudo diferente em 1958. Uma comissão técnica formada por médicos e psicólogos elaborou um parecer “científico” que ajudou o técnico Vicente Feola a montar o time titular para a estreia no Mundial da Suécia.
Entre os 11 que entraram em campo contra a Áustria, apenas um não era branco, Didi (tanto porque ele era o craque do time, como porque seu reserva imediato, Moacir, também era negro). Os outros negros e mulatos da seleção foram empurrados todos para a reserva: Pelé, Garrincha e Djalma Santos entre eles.
Eles só voltaram ao time de cima no terceiro jogo, contra a União Soviética, quando o treinador precisava da vitória e resolveu botar em campo os melhores jogadores e não os mais claros. Pelé e Garrincha, como se sabe, foram a sensação daquele Mundial. E jamais perderam uma partida juntos até 1966.
“O talento e a trajetória do Pelé foram fundamentais para arrancar um espaço para o negro no futebol brasileiro, mesmo ele nunca tendo se envolvido diretamente no combate ao preconceito”, diz Angélica Basthi.
O discurso de Pelé sobre racismo é, e sempre foi, parecido com o de muitas pessoas de sua geração: o da negação. Ele diz que ao ouvir um xingamento racista vindo das arquibancadas, preferia ignorá-lo, como se não falar de um problema ajudasse a acabar com ele. Mesmo que ele tenha contribuído com o combate ao racismo através de sua trajetória pessoal, ele sempre foi cobrado a ter uma postura mais crítica e militante, o que nunca aconteceu.
É o oposto do discurso e da postura de Aranha, que, como muitas pessoas de sua geração (negras e brancas), preferem o enfrentamento duro de um problema que os afeta diretamente.