Pelo fim do uso de “carente”

 

Há evolução no universo do investimento social. “Assistencialismo”, “paternalismo”, “caridade” são termos que praticamente só se usa para se referir ao passado ou a erros ainda cometidos no presente.

A palavra “carente”, porém, ainda é vastamente empregada. Ouço-a em todos os eventos, seminários, conferências – pronunciada por iniciantes na área social e por veteranos com sólida formação. Na mídia, então, nem se fala e, pior, “menor carente” ainda impera e nos brinda com duas visões equivocadas em um único termo.

Que fique claro desde já: não estou julgando aqueles que usam “carente” com a intenção de evitar palavras que possam parecer preconceituosas, como “pobre”, por exemplo. Estou propondo outra coisa. Vamos lá:

Uma busca por “carente” no Google traz como um dos primeiros resultados a seguinte frase: “ter um namorado é o objetivo da mulher carente”… Já uma busca no site do GIFE (em 31/05/11) encontra 226 resultados para o vocábulo que, certamente, não aludem a mulheres sem namorados…

A reflexão que proponho é a seguinte: Por que esta necessidade de qualificar assim as pessoas com quem se faz investimento social? Por que não dizer simplesmente:

100 jovens participam do Programa XYZ.

Em vez de:

100 jovens carentes (ou de comunidades carentes) participam do Programa XYZ.

Se os tais jovens não fossem pobres, se usaria uma qualificação equivalente? Algo como:

100 jovens sem carências embarcaram para a Disney.

O dicionário define carente como “aquele que não tem; aquele que precisa; necessitado”. Pergunto: quem tem tudo? Este é um lado da questão. O outro é: pobre não tem nada a oferecer? E este é o lado mais perigoso.

O perigo está em se estabelecer um tipo de relação de mão única que leva à dependência, ou seja, uma relação assistencialista. Doa-se o excedente para o carente, que se sente incapaz de sair deste lugar porque não é visto como alguém que tem recursos próprios.

Uma vez, após uma formação sobre o “olhar apreciativo”, um morador de uma comunidade me disse: “Nunca mais vou me colocar no lugar do carente: eu reclamava do assistencialismo, mas não percebia que eu mesmo não acreditava nas minhas capacidades, nem nas da minha comunidade”.

Fiquei muito feliz por tê-lo ajudado a se considerar capaz e talentoso. E pensei muito na grande contribuição que os investidores sociais podem levar às comunidades, se não as tratarem como carentes. Se focarem sua atuação no fortalecimento dos talentos das pessoas, na cultura do povo, nas organizações criadas pelas comunidades, na capacidade de interagir, opinar e decidir da população e em muitos outros recursos que vão aparecendo quando são valorizados.

Aqueles que já têm a visão de que o melhor retorno que pode ter o investimento social é o desenvolvimento das pessoas e das comunidades podem ajudar, evitando o uso da palavra “carente”. As mudanças de visão (ou paradigma ou modelo mental) são facilitadas quando trocamos as palavras. Por isso, vale um esforço de todos.

Para concluir: tente se colocar no lugar de um jovem classificado como “carente”. Foi agradável? Então…

 

 

Célia Schlithler é consultora de OSCs, institutos e fundações empresariais e setor público em desenvolvimento de grupos, redes e comunidades, com trabalhos para a RedEeAmerica e institutos Alcoa, Camargo Correa, de Cidadania Empresarial, entre outros.

 

Fonte: GIFE

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