Somos pioneiros em acabar com a execução oficial por parte do Estado, mas as polícias matam seis por dia.
Por Mauricio Santoro Do Carta Capital
Em Noor, no Irã, Abdolah Hosseinzadeh dá um tapa no assassino de seu filho, em 15 de abril. O perdão de Hosseinzadeh salvou o homem, que estava prestes a ser enforcado
Em janeiro de 2015, pela primeira vez um brasileiro foi executado por um governo estrangeiro. Policiais da Indonésia fuzilaram Marco Archer, que havia sido condenado por tráfico de drogas naquele país. A execução confrontou o Brasil com a realidade brutal da aplicação da pena de morte. Por que houve uma forte crítica externa ao governo indonésio? As execuções foram ilegais à luz do direito internacional ou a Indonésia está em seu direito soberano? As autoridades brasileiras agiram corretamente ao convocar para consultas seu embaixador em Jacarta? Para responder às perguntas, é preciso analisar como a pena de morte se encaixa no debate contemporâneo de relações internacionais e conhecer o surpreendente e pioneiro papel que o Brasil desempenhou nesse tema.
Panorama Internacional
Desde a Segunda Guerra Mundial há uma objeção crescente à pena de morte, que acompanha a valorização dos direitos humanos e o repúdio às catástrofes humanitárias do século XX. Esses movimentos levaram à abolição dessa forma de punição em diversos países. Atualmente, cerca de 70% eliminaram-na de seus códigos legais ou não a aplicam mais. Em 2013, por exemplo, 22 países (pouco mais de 10% do total mundial) realizaram execuções.
Que Estados ainda utilizam a pena de morte? Na estimativa da Anistia Internacional, a China sozinha executa mais do que o resto do mundo – algo em torno de 2 mil pessoas por ano, embora os dados sejam imprecisos devido à dificuldade de acesso ao sistema jurídico chinês. Nos demais países, ocorreram cerca de 800 execuções confirmadas em 2013 – 80% na Arábia Saudita, Irã e Iraque. Todos esses quatro governos têm em comum o fato de serem regimes autoritários, que cerceiam de maneira cotidiana os direitos humanos de seus cidadãos.
Poucas democracias mantêm a pena de morte e as únicas que a utilizam com frequência são os Estados Unidos e a Indonésia. No caso americano, há uma distinção importante: os estados podem optar por aboli-la. Dezoito dos 50 assim o fizeram. Nos anos 2000, Nova York, Nova Jersey, Novo México e Illinois, entre outros, tomaram essa decisão. Texas, Flórida e Ohio concentram cerca de 70% das mortes. Na década de 1970, a Suprema Corte dos Estados Unidos chegou a proibir sua aplicação, julgando-a incompatível com a Constituição.
Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch são contra a pena de morte em qualquer situação, considerando-a uma violação do direito à vida – que o Estado deve proteger, e não destruir – e uma forma de punição cruel, desumana e degradante. A Igreja Católica tem a mesma posição.
Quatro tratados internacionais proíbem a pena de morte, pelo menos em tempos de paz. Um deles, no âmbito da ONU: o Segundo Protocolo Opcional ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1989), e três acordos regionais, um na Organização dos Estados Americanos e dois na Europa. O tratado das Nações Unidas foi ratificado por 81 países, de todos os continentes.
A adesão a esses acordos é voluntária. Contudo, além dos tratados formais, desde 2007 a Assembleia Geral da ONU aprova resoluções recomendando que todas as nações adotem moratória nas execuções. Esses documentos não têm a força obrigatória da lei, mas possuem considerável influência política. Ir contra eles significa desrespeitar a opinião pública internacional.
Razões para o repúdio internacional à Indonésia
A Indonésia não ratificou nenhum tratado internacional contra a pena de morte, mas havia demonstrado sensibilidade às tendências globais, abstendo-se de utilizá-la por diversos anos, entre 2008 e 2013. Essa decisão foi mantida mesmo diante dos graves desafios de segurança enfrentados pelo país, como o combate a grupos extremistas político-religiosos. Em grande medida, representava parte dos esforços dos novos governos democráticos estabelecidos após a ditadura de Suharto (1967-1998) para respeitar os direitos humanos.
Eleito presidente em 2014, Joko Widodo fez da pena de morte um cavalo de batalha eleitoral e transformou sua aplicação – em particular no caso do tráfico de drogas – em promessa de campanha. Em grande medida, para ganhar a simpatia dos grupos muçulmanos que advogam políticas mais repressivas com relação a entorpecentes. É a contramão das tendências globais que apontam para abordagens mais liberais e flexíveis, como as adotadas por diversos estados americanos, em vários países da Europa Ocidental e no Uruguai, e como recomendada pela comissão da ONU sobre drogas.
A Indonésia é um importante destino turístico internacional, sobretudo por conta de Bali e outras ilhas conhecidas pela beleza, e que são também pontos importantes do comércio global de drogas. O país já havia executado anteriormente outras pessoas por tráfico, mas até 2015 nenhum cidadão de uma nação rica havia sido punido dessa forma. Neste ano, o holandês Ang Kim Soei foi vítima dessa punição, na mesma sequência em que foram fuzilados o brasileiro Archer, Daniel Enemuo e Namaona Denis (Nigéria) e Tran Thi Bich Hanh (Vietnã).
Foi um contraste com o passado, quando houve casos como o do francês Michael Blanc, libertado em 2014 depois de forte campanha internacional em sua defesa. Ele havia sido sentenciado à prisão perpétua na Indonésia, ao ser preso no aeroporto com 3,8 kg de haxixe, escondidos em equipamento de mergulho.
A mudança brusca no comportamento do governo da Indonésia, em contradição com as recomendações internacionais, levou a críticas externas ao presidente Widodo. Brasil e Holanda condenaram as execuções e a rejeição de seu pedido de clemência por seus cidadãos e convocaram seus embaixadores em Jacarta para consultas – importante sinal de censura diplomática. O governo brasileiro acompanha os casos de Archer e de Rodrigo Gularte desde suas prisões, há mais de uma década, e havia feito discreta e constante pressão de bastidores junto aos antecessores de Widodo.
O papel do Brasil no debate
Há uma longa tradição brasileira de repúdio à pena de morte que antecede em muito a execução de Archer. O Brasil foi pioneiro em abolir essa forma de punição. Desde a 1ª Constituição republicana, em 1891, o país a proíbe em tempos de paz, embora a mantenha em tempos de guerra para crimes ligados à segurança nacional. À época, na América Latina, só a Costa Rica tinha legislação semelhante.
A decisão brasileira foi fruto de trauma das décadas finais da monarquia, um dos piores erros judiciais da história do País: a execução do fazendeiro Manuel da Mota Coqueiro (1855), condenado erroneamente como mandante de uma chacina de oito colonos em suas terras. O imperador lhe negou o perdão, mas ficou tão impactado quando soube de sua inocência que passou a conceder a graça aos homens livres condenados à morte – nenhum foi executado a partir da década de 1860, embora escravos ainda o fossem até 1876.
A ditadura de 1964-1985 rompeu com a tradição humanitária da república e reestabeleceu a pena de morte, mas não chegou a implementá-la oficialmente. Os assassinatos dos opositores do regime foram execuções extrajudiciais, crimes que ocorreram à margem do sistema jurídico.
Na Constituição de 1988, a proibição da pena de morte é cláusula pétrea. Não pode ser alterada por emenda constitucional, plebiscito ou referendo ou qualquer outra forma de mobilização – importante freio institucional aos ardores das versões brasileiras de Widodo. Após a promulgação da nova Carta Magna, o Brasil ratificou os acordos internacionais da ONU e da OEA contra a pena de morte, posição que reforça nos fóruns multilaterais e que, coerentemente, defendeu nas críticas à Indonésia.
É importante que o debate impulsionado pela condenação de Marco Archer e Rodrigo Gularte possa estimular também a reflexão sobre as contradições brasileiras. Mesmo sem pena de morte, as polícias do País matam pelo menos seis pessoas por dia. Muitos desses casos são execuções sumárias. Que tenhamos políticas de segurança pública à altura dos princípios humanitários expressos em nossa Constituição.
*Maurício Santoro é cientista político, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.