José Rivair Macedo é organizador de publicação da editora Expressão Popular sobre o pensamento africano do século XX
Por Juliana Gonçalves, do Brasil de Fato
“O pan-africanismo é a ideologia política africana mais importante do século XX”, afirma o organizador da publicação, José Rivair Macedo / Ramon Moser (DEDS/PROREXT/UFRGS)
Pesquisadores brasileiros e africanos realizam uma leitura crítica dos principais pensadores africanos do século 20, no livro “O pensamento africano no século XX”. A publicação, organizada por José Rivair Macedo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, será lançada nesta quinta-feira (9) na livraria da editora Expressão Popular, na capital paulista.A obra aborda temas importantes da história africana e seus desdobramentos nos países da diáspora. Entre os teóricos explorados no livro, estão Frantz Fanon , Léopold Sédar Senghor, Achille Mbembe e Aimé Césaire, Cheikh Anta Diop.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o professor José Rivair Macedo destaca como os fenômenos políticos e culturais do modo de pensar dos africanos, adquirem sentido e ganham significado “no coletivo e não no plano individual”.
Do ponto de vista de movimentos importantes que influenciaram o cenário africano, Macedo ressalta o pan-africanismo e o afrocentrismo. Além disso, explica a diferença presente na construção de um pensamento africano tradicional – “pautado pelos saberes acumulados pela experiência ancestral e oralidade” – e o não tradicional – marcado por conhecimentos “formais transmitidos pela escrita”.
O professor explica ainda que faz parte da expressão do pensamento africano não estabelecer “comparações ou hierarquias entre essas instâncias do conhecimento, mas reconhecer suas diferentes formas de expressão, suas diferentes finalidades”.
Sobre a revolução africana, Macedo lembra a importância de Kwame Nkrumah, Frantz Fanon e Amílcar Cabral, pensadores que consideravam que o processo revolucionário não devia se limitar ao plano político ou econômico, “mas sim propor uma reestruturação mental, cultural, que permitisse aos colonizados recuperar sua humanidade plena, a capacidade de decidir os rumos de sua existência”.
“Foram homens de ação, empunharam armas em defesa da liberdade”, aponta o professor.
Leia entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: A obra está dividida de acordo com períodos e processos que trouxeram grandes transformações ao continente africano. Pode falar um pouco sobre essa escolha?
José Rivair Macedo: O livro é estruturado em torno da interpretação de obras e autores que se identificam como africanos e desenvolvem leituras sobre problemas comuns que afetaram os africanos durante três períodos específicos. Primeiro, o período colonial, onde se discute sobretudo o ideário do pan-africanismo e da negritude. Depois, o período da descolonização, marcado por alternativas revolucionárias para a libertação nacional e a reorganização social, econômica, política e cultural. E, por fim, o período pós-colonial, quando o problema passou a ser a gestão interna dos recursos disponíveis, a superação do legado colonial e a distribuição do poder político-econômico.
Como foi o processo de construção da publicação?
A concepção do livro deve muito aos eventos e debates promovidos desde 2014 pela Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da (Ilea–UFRGS) e pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neabs). Resulta do acúmulo de discussões do ciclo de conferências ocorrido em 2014-2015 chamado “A produção do saber na África contemporânea”, e das apresentações, discussões e debates da Semana da África na UFRGS ocorrida em 2015 cujo tema central foi “Pensamento africano contemporâneo”.
Alguns textos que integram o livro constituem versões ampliadas e revistas de trabalhos monográficos realizados como requisito final para a disciplina “O pensamento social africano: questões, debates e tendências de abordagem”, ministrada no segundo semestre de 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Outros capítulos foram elaborados por docentes e jovens pesquisadores africanos convidados especialmente como colaboradores da obra.
O senhor cita ainda nas primeiras páginas, um provérbio em língua bambara cuja tradução é: “A verdade não cabe numa só boca’’. O continente africano ainda sofre com as histórias únicas contadas sobre ele?
Sim, por isso procuramos tanto quanto possível respeitar o modo de pensar dos africanos, para quem os fenômenos adquirem sentido e ganham significado no coletivo e não no plano individual. A formulação que melhor explica esse traço cultural é o axioma que fundamenta a ética do unbunto, “eu sou porque nós somos”, bastante difundido nas áreas central e austral do continente entre os povos falantes de línguas bantu e que encontra correspondência em outros lugares. A influência dos elementos tradicionais é notada, por exemplo, no discurso político de Amilcar Cabral, onde a base teórica do marxismo é forçada a dialogar com expressões originais dos saberes populares, ancestrais, conforme o pesquisador José Carlos Gomes dos Anjos aponta em nosso livro.
Os autores selecionados são em sua maioria brasileiros que fazem uma leitura da contribuição de grandes pensadores africanos. Qual é a importância disso, tendo em vista que a história de África é constantemente contada por não-africanos?
Entendemos os “estudos africanos” como um campo não consensual, constituído por diferentes tendências cujo perfil depende dos fundamentos epistemológicos considerados válidos pelos pesquisadores – em seus respectivos âmbitos de produção, difusão e recepção, na África e fora dela. O problema foi levantado há décadas pelo sociólogo Fábio Leite, da Universidade de São Paulo, ao sublinhar a existência de pelo menos duas formas gerais de percepção da realidade africana: uma “visão ocidental”, constituída em torno de uma África-objeto; e uma visão que vai de dentro para fora do continente e revela a África-sujeito. Tal proposição não sugere a existência de uma oposição binária entre interpretações feitas fora ou dentro da África, a separar autores não-africanos de autores africanos – em benefício dos últimos.
O que está em causa não é necessariamente quem estuda, ou de onde estuda, mas como estuda e a partir de quais referências. Em nosso livro, ao lado dos pesquisadores brasileiros estão pesquisadores de origem cabo-verdiana, angolana, guineense, moçambicana, senegalesa. O que justifica a autoria desses últimos não é serem “autenticamente” africanos, mas portadores de conhecimentos e experiências que os autorizam a tratar dos assuntos escolhidos para seus respectivos textos com pertinência e relevância para o conhecimento das realidades sociais e culturais africanas.
Como, em linhas gerais, o livro traça as diferenças entre o pensamento africano tradicional e o não tradicional? Chama a atenção o cuidado na distinção entre pensamento africano e pensamento diaspórico, pode falar um pouco dessa diferença e necessidade de pontuá-la?
Trata-se de uma distinção metodológica importante. Em linhas gerais pode-se dizer que o pensamento africano tradicional é constituído por um vasto e diversificado conjunto de saberes acumulados pela experiência ancestral, alimentado e transmitido por meio da oralidade, através dos tradicionalistas. O pensamento africano não tradicional, por sua vez, diz respeito ao conjunto de saberes formais, eruditos, transmitido através da escrita, empregado para explicar os fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais relativos ao continente e aos seus povos.
A intenção não é estabelecer comparações ou hierarquias entre essas instâncias do conhecimento, mas reconhecer suas diferentes formas de expressão, suas diferentes finalidades e seus eventuais pontos comuns. Tomamos também o cuidado de distinguir e separar pensamento africano de pensamento diaspórico. Não porque sejamos partidários da ideia de uma “essência africana” ou de uma “autenticidade africana”. Ocorre que, embora a substância que anima essas correntes de ideias diga respeito, praticamente, aos mesmos sujeitos, isto é, aos povos africanos ou de origem africana, os deslocamentos decorrentes dos fenômenos associados à Diáspora Negra promoveram reconfigurações espaciais, temporais e culturais, com consequências inovadoras no plano identitário.
De modo que, não obstante a origem africana seja comum aos nascidos no continente e aos afrodescendentes, neste último caso a ruptura e o deslocamento promovidos pela condição do cativeiro fendeu a identidade étnica originária e promoveu uma dupla desterritorialização (na África e no Novo Mundo), forçando movimentos de recomposição sociocultural que capacitaram os cativos e seus descendentes a resistir em situação de profunda opressão e recriar sua existência em outros termos – onde a África torna-se poderosa referência de ancestralidade.
Cheikh Anta Diop foi um historiador e antropólogo senegalês
Como a revolução africana contribuiu ou foi parte do processo da construção desse pensamento africano não tradicional?
Poucos expressaram com tanta eloquência a violência inerente ao colonialismo como o poeta antilhano Aimé Césaire. A dominação colonial impunha inevitavelmente ou a aniquilação ou a assimilação dos povos dominados, negando-lhes de todo modo sua capacidade de gerir seu próprio destino. A ruptura reivindicada por teóricos africanos da descolonização como Kwame Nkrumah, Frantz Fanon e Amílcar Cabral não se limita ao plano político ou econômico, mas impunha uma reestruturação mental, cultural, que permitisse aos colonizados recuperar sua humanidade plena, a capacidade de decidir os rumos de sua existência.
A construção do conceito de negritude dentro do continente africano é explorado no livro a partir dos ideias do senegalês Leopold Sédar Senghor, pode falar um pouco a respeito disso?
No primeiro capítulo do livro Gustavo de Andrade Durão apresenta-nos um panorama histórico da gênese, desenvolvimento e crítica do movimento da negritude a partir da interpretação de Leopold Sédar Senghor. Visto como movimento estético de valorização da cultura negra, ou como movimento político de contestação ao colonialismo, a negritude, junto com o pan-africanismo e o ideário da “personalidade africana”, constitui o marco inicial da emergência de uma identidade negra transcontinental.
Como o movimento pan-africanista e o afrocentrismo aparecem no livro?
Os dois movimentos ganharam forma inicial em contexto colonial e vieram a desempenhar papel diferencial na segunda metade do século XX, durante o processo de emancipação e reorganização política dos atuais países africanos. O pan-africanismo é, sem dúvida, a ideologia política africana mais importante do século XX, ao postular a existência de uma solidariedade entre africanos e afrodescendentes de todo o mundo, e seu grande defensor foi Kwame Nkrumah – conforme é estudado em um dos capítulos do livro. Quanto ao afrocentrismo, coube ao pensador senegalês Cheikh Anta Diop suas primeiras formulações, em termos absolutamente científicos, pelos quais se procurava provar a anterioridade do processo civilizatório mundial na África negra em suas interações com o Egito. Em última instância, reivindicava o reconhecimento da capacidade de produzir conhecimento, ciência, pelos próprios africanos, assim como sua capacidade de organização política autônoma em escala nacional e continental.
Em um dos textos, o autor localiza um Egito negro, bem diferente desse Egito embranquecido constantemente explorado pelo cinema e televisão brasileiros. Essa tentativa de embranquecer o Egito faz parte de uma ação muito recorrente de desqualificar a África e seus frutos? O que o Egito significou para a África?
As publicações de Cheikh Anta Diop, a começar por Nations nègres et culture (Nações negras e cultura – 1954) inovaram ao levantar a discussão sobre a anterioridade africana na história da humanidade e ao reivindicar o vínculo matricial entre o Egito e a África negra, e a influência do Egito sobre a Grécia e o mundo clássico – considerados matriz cultural do ocidente. Até então, o Egito era visto como uma civilização eminentemente branca. Diop problematizou essa visão racista e eurocêntrica e foi além, apontando em outras obras de sua autoria, como A identidade cultural da África negra, similaridades entre determinadas instituições, estruturas sociais, registros linguísticos, sistemas de valores e costumes de origem egípcia e aquelas observadas em outras partes do continente. Ao fazê-lo, ofereceu aos africanos uma referência histórica para uma releitura positiva do seu passado.
Psiquiatra, filósofo, cientista social e revolucionário, Frantz Fanon é um dos pensadores mais instigantes do século XX
Qual a importância da figura de Franz Fanon e de Amilcar Cabral na construção de um pensamento africano libertário?
O que estes dois grandes nomes de revolucionários africanos têm em comum é o fato de que, mais do que intelectuais e teóricos da libertação, foram homens de ação, empunharam armas em defesa da liberdade. Para ambos, a alternativa libertária supunha o dever da violência contra a violência maior praticada pelos agentes do colonialismo. Suas interpretações da realidade não constituem simples decalque das teorias sociais e políticas que aprenderam fora de seus lugares de origem, nas metrópoles europeias. Provinham igualmente da experiência social adquirida na práxis revolucionária e na consideração das realidades locais em que atuaram. Muito provavelmente por causa disso, seus textos continuam a fazer sentido e a servir de referência para as teorias críticas no mundo contemporâneo.
O senhor acha que o pensamento africano, mesmo o não tradicional, se vale ou valoriza das contribuições ancestrais, inclusive dos saberes tradicionais que versam sobre um mundo metafísico?
Sim. Para o filósofo congolês V. Y. Mudimbe, um dos intelectuais estudados no livro, a gnose africana, isto é, o conhecimento profundo sobre a África e os africanos resulta de sucessivas interações entre tradições, formas de conhecimento nutridos pela tradição oral, e o saber formal de tipo ocidental. Por outro lado, o filósofo marfinense Paulin Hountondji desenvolveu diversos seminários e orientou projetos de investigação sobre o que ele denomina de “conhecimentos endógenos”.
São formas de apreensão dos fenômenos em que os conhecimentos escritos, a tradição ancestral e a ciência não são colocados em confronto e sim em interação. Para esses autores, os processos de aquisição, acumulação e transmissão de conhecimento não são isolados, mas se encontram em constante circulação, sendo apropriados e utilizados de acordo com diferentes interesses e finalidades.
Qual é a relação que existe entre o pensamento africano atual e a busca por liberdade em seu sentido mais amplo? Os impactos do colonialismo e marcas do processo revolucionário para muitos, inconcluso, ainda impedem essa liberdade?
As formas de expressão do ser africano são eminentemente periféricas, subalternas, enquadradas segundo critérios de distinção étnico-racial, impostos de fora para dentro do continente. O próprio campo de estudos do africanismo resulta de sucessivas camadas discursivas elaboradas em contexto colonial, e nesse sentido, a valorização da palavra dos africanos assume caráter descolonizador e antirracista. Ao divulgar suas ideias, poderemos conhecer melhor o seu modo de conceber o mundo e de oferecer respostas aos seus problemas a partir de perspectivas endógenas, mediante alternativas próprias.
Há um longo caminho para que isso seja plenamente atingido no continente, onde a própria estrutura educacional em geral reproduz os modelos ocidentais. Seria preciso buscar alternativas científicas e epistemológicas inovadoras, e algumas delas tem sido colocadas em prática pelo Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais na África (CODESRIA), o mais importante núcleo de pesquisa acadêmica do continente, conforme assinalado em nosso livro.
Lançamento O pensamento africano no século XX
Quando: Dia 09/02, às 19h
Onde: Livraria da Editora Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista – SP