E depois das cotas?
Por Clarice Cardoso
Uma aluna levanta a mão para falar durante a aula em uma universidade carioca. A professora desvia os olhos para, assim, não ter de dar voz àquela opinião. “Ela (a professora) já sabia que eu era do pré-vestibular. (…) E parece que tem raiva!” O relato é de um universitário negro e retrata uma de muitas vivências de preconceito encontradas por beneficiários de programas de ação afirmativa.
O caso está relatado no livro Afrocidadanização, de Reinaldo da Silva Guimarães, que, defendido, em 2007, como tese de doutorado, surgiu para acompanhar o destino de alunos egressos dos cursos pré-vestibular comunitários e populares, beneficiados por programas de ação afirmativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), após a graduação.
A inclusão de alunos negros e pobres começou a partir de um convênio, feito em 1994, entre a universidade e o Movimento Social Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), o que permitiu que esses alunos pudessem ingressar em cursos superiores com bolsas de estudo. Assim, centenas de negros oriundos de comunidades carentes ganhavam a chance de frequentar as aulas na universidade. Uma oportunidade capaz de mudar vidas, mas que esbarrariaainda em muitas outras formas de racismo, como mostra uma situação já na abertura do livro.
Guimarães narra a história de um importante escritório de advocacia carioca que pediu à PUC-Rio indicação de um bom candidato. Por orientação da universidade, o aluno foi até o local deixar seus documentos e, ao voltar para incluir um dado que esquecera, vê que alguém anotara no envelope a palavra “mulato”, que ele risca e troca por “negro”.
No livro, o autor relata ainda as barreiras relacionadas a preconceito, questões financeiras e acadêmicas que esses alunos enfrentaram. Ao longo das páginas, vai consolidando a necessidade de programas de socialização e inclusão social – uma reflexão ainda mais relevante com a nova lei das cotas, que prevê a reserva de 50% de vagas nas universidades e institutos federais em quatro anos. A relevância do estudo está no fato de mostrar a discussão sobre as cotas da perspectiva de quem é beneficiário.
E, mais, mostrar o quanto o racismo permanece embrenhado na sociedade: mesmo os que conseguem ultrapassar a barreira educacional, como os personagens do livro, encontrarão obstáculos no futuro. “O problema estrutural do País não é socioeconômico, é racial desde sempre, desde que chegaram os primeiros negros escravizados.
É preciso resolver o problema da condição de desigualdade para, a partir daí, resolver o econômico. É por isso que o foco das ações deve ser a questão racial sim”, afirma Guimarães. Ele conclui: “O que se nota é que, para mudar essa estrutura, precisamos sim de ações afirmativas. Quando você apresenta oportunidades a um jovem carente, por exemplo, e elas ficam claras a partir do exemplo de outros membros da família, isso é um fator transformador de cultura e gerador de mobilidade e transformação social. As ações afirmativas têm esse poder revolucionário”.
Fonte: Carta Capital