População infantil deve ser prioridade na luta por justiça climática

FONTEAndréia Coutinho Louback, do Le Monde Diplomatique Brasil
Unsplash

É comum ouvirmos que o debate sobre justiça climática é – e está – intrinsicamente delineado por uma perspectiva de futuro. É sobre gerações vindouras, sim, mas também do presente. Não podemos, em hipótese alguma, reduzir o tema a uma prioridade do amanhã. Como o tempo urge, não há mais como reparar os prejuízos decorrentes do modelo industrial, capitalista e de consumo que nos trouxeram até aqui, afetando diretamente nossa saúde, nosso estilo de vida, nossas crianças, etc. E, considerando o recorte da intergeracionalidade, quero dedicar este texto em homenagem ao Dia Internacional da Menina, celebrado no dia 11 de outubro, e ao Dia das Crianças. Existe a possibilidade de tratar mudanças climáticas sem o viés da infância?

A Dia Internacional da Menina é um marco ainda desconhecido e questionado. A data “comemorativa” foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2012. Na verdade, não há muito o que “celebrar” frente ao cenário mundial de diferentes tipos de discriminação, abusos e violências desde a primeira infância. O objetivo da ONU, porém, é conscientizar-nos sobre a importância de empoderar todas as meninas, consideradas como as principais vítimas de discriminação de gênero, violência doméstica e sexual. A gravidade é ainda mais exacerbada quando falamos das meninas negras, cotidianamente afetadas pelo racismo estrutural nas ruas, nas escolas, nos hospitais, nas comunidades e, por vezes, dentro da própria família.

Fato é que para discutir sobre empoderamento, em qualquer natureza, é preciso dar um passo atrás na reflexão sobre as condições ambientais para que a prática do empoderar alce voos mais sistêmicos e permanentes. E isso, irrefutavelmente, perpassa pelo caráter da informação e conhecimento sobre o colapso climático que vivemos no Brasil afora. Ao entrar na seara da crise climática, o horizonte torna-se ainda mais tenebroso – e obscuro – quando temos a premissa do gênero e da infância.

Dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostraram que cerca de 5.6 milhões de crianças com menos de 5 anos já perderam suas vidas ao redor do mundo com doenças e condições atreladas à poluição do ar, água não potável, exposição a produtos químicos e precariedade do saneamento básico. Entre elas, aproximadamente um milhão tiveram o índice de mortalidade associada à poluição atmosférica. Tais consequências são tão nocivas à população infantil que os impactos podem iniciar até mesmo no útero materno, elevando as taxas de risco de partos prematuros e – futuramente – pneumonias na infância e doenças respiratórias e crônicas, como a asma.

Isso ocorre porque, além de o sistema imunológico das crianças estar em estágio de desenvolvimento e o aparelho respiratório em formação, elas são muito mais expostas e sensíveis a fatores externos – como a poluição do ar. Até a própria estatura da população infantil é relevante para este diagnóstico, pois, sendo mais baixas em estatura, ficam naturalmente mais próximas das fontes poluidoras, especialmente o escapamento de carros e/ou de veículos pesados.

Não obstante, embora o Brasil – antes da pandemia da Covid-19 – tenha apresentado progressos significativos na qualidade de vida das crianças, é inegável o quanto os contextos de desigualdade social revelam um verdadeiro risco de apartheid climático nas regiões brasileiras, fragilizando ainda mais o direito à dignidade da vida, alimentação básica, moradia e acesso à água.

E por falar em direitos, o programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, tem se posicionado e apostado ativamente em iniciativas rumo à visibilidade e efetividade do artigo 227 da Constituição Federal do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988, entre outras conquistas e vitórias, ela reconheceu meninas e meninos como cidadãos em condição especial de desenvolvimento, determinando os direitos e o melhor interesse de crianças e adolescentes como absoluta prioridade das famílias, da sociedade e do Estado.

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”

Artigo 227, Constituição Federal do Brasil
Tendo em vista esta premissa, que abraça nossas crianças e adolescentes como prioridade absoluta, um dos horizontes de atuação do programa mencionado é o eixo de justiça climática e socioambiental. Considerando a vulnerabilidade da população infantil frente às causas, efeitos e consequências da mudança do clima, até quando as negociações climáticas vão invisibilizar o público infantil em seus rankings de discussões de emergência? Se a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) é uma meta que envolve a cooperação dos mais diversos setores da sociedade, como podemos seguir sem, ao menos, ter dados científicos e projetos de lei suficientes sobre adaptação e mitigação das mudanças climáticas no Brasil como ênfase na infância? Está dado que a problemática se distancia da preeminência das agendas dos parlamentares, comunidade científica e lideranças com o poder decisório em mãos.

Em contrapartida, os poucos dados disponíveis são alarmantes. No último ano, antes de a Amazônia subitamente repercutir e dominar as manchetes mundiais no segundo semestre, a Fiocruz – em parceria com o Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (INCICT) – mapeou o impacto das queimadas na saúde infantil, considerando as áreas da região. O estudo comprovou que, além de o número de crianças internadas com problemas respiratórios ter dobrado, tivemos cerca de 2,5 mil internações a mais por mês, entre maio e junho de 2019

Soma-se a isso, a taxa de mortalidade em crianças hospitalizadas por problemas respiratórios foi maior em cinco dos nove estados que compõem a Amazônia legal. Em Roraima, por exemplo, 2.398 mortes foram registradas, relevando um trágico quadro de impacto da poluição atmosférica em grupos populacionais mais vulneráveis. Infelizmente, não houve um recorte de gênero nas estatísticas e dados apresentados pelo estudo.

Justiça climática para as diversas infâncias
Nesse sentido, racializar o tema da justiça climática é imprescindível para evitar que abordemos as infâncias sob uma perspectiva única. As vulnerabilidades integram variáveis diversas que não cabem na universalização de realidades e experiências de vida das 57 milhões de crianças e adolescentes do Brasil. Das 57 milhões, 31 são meninos e meninas negros (as) e 141 mil são indígenas. O conceito de justiça em prol das mudanças climáticas nos desafia a repensar dinâmicas territoriais, singularidades étnicas e resgatar as minorias sociais para o epicentro da formulação de políticas e do debate público.

Diante disso, pouco importa supervalorizar uma discussão sobre ambição climática se as nossas crianças e adolescentes ainda não ocupam a centralidade das metas de médio e longo prazo. Entender a população infantil como prioridade absoluta é parte da luta por justiça climática, que perpassa a regra do direito brasileiro. Afinal, se “as crianças representam o futuro de uma nação, garantir sua saúde e zelar pelo desenvolvimento pleno de todo seu potencial físico e intelectual deveria ser uma das preocupações primordiais de todas as sociedades.”

Cabe a nós, portanto, priorizar as necessidades das crianças, investindo em esforços de (re)formulação política e promovendo um futuro de resiliência. Como? Envolvendo-as como parte dos planos nacionais de mitigação e adaptação; protegendo-as juntamente com suas famílias que foram, de forma compulsória, intimadas a sair de seus lares devido aos impactos da mudança do clima em suas cidades, regiões ou países; defendendo que os recortes de gênero e gênero não devem ser opcionais, mas estruturais para nortear quaisquer diagnósticos e pesquisas relevantes; e, por fim, provendo-as conhecimento de qualidade e educação climática nas escolas para empoderá-las a uma consciência perene de justiça socioambiental e inovação.

Finalizo a reflexão com um trecho-chave do relatório intitulado “Unless we act now” (Se não agirmos agora, em tradução livre), da Unicef, que defende que as “crianças têm perspectivas únicas sobre questões ambientais e uma participação maior nos impactos das mudanças climáticas. Elas são atores importantes na melhoria da capacidade comunitária, tomando medidas para enfrentar os riscos relacionados ao clima e provendo estilos de vida ambientalmente sustentáveis. A participação dos jovens não é mais algo sobre o qual os governos e organizações internacionais possam simplesmente falar em vão – é uma necessidade se o objetivo é realmente proteger os interesses das futuras gerações”. E, indubitavelmente, eu acrescentaria a geração do agora, pois quando se trata da crise climática, o amanhã é hoje!

Andréia Coutinho Louback é jornalista pela PUC-Rio, ambientalista e mestra em relações Ético-raciais (CEFET/RJ). Atualmente, faz um curso de especialização em Cidades, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais no IPPUR/UFRJ. Entre seus principais temas de interesse e paixão estão: justiça climática, cultura, religião, literatura, educação e desigualdades raciais. Por dois anos e meio, coordenou a comunicação do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Hoje, coordena as ações de comunicação e mobilização no eixo de justiça climática e socioambiental, do programa Prioridade Absoluta, no Instituto Alana.
Fonte: Andréia Coutinho Louback, do Le Monde Diplomatique Brasil
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