Por que nao eu – por Mãe Stella

Sofrimento não é “minha praia”, mas é impossível negar que este sentimento, dolorido, faz parte da existência de absolutamente todos os seres humanos. Normalmente, quando uma pessoa se vê obrigada pelo destino a passar por intensos momentos de dor, tende a lançar para os seres superiores a seguinte pergunta: “Por que eu, Senhor?” Se essas pessoas refletissem melhor, perguntariam: “Por que não eu, Senhor?” Sobre isso, sabiamente, o ateu Christopher Hitchens diz: “À pergunta cretina ‘Por que eu?’, o cosmos mal tem o trabalho de responder: ‘Por que não?”.

O candomblé, apesar de ser uma religião extremamente lúdica, não se furta de ensinar aos seus adeptos que o sofrimento é inevitável para qualquer ser vivo. Essa religião milenar possui várias lendas através das quais ensina, entre outras coisas, que alguns dos sofrimentos pelos quais se passa na vida é uma questão de destino, enquanto outros são vivenciados por opção. Sobre o último caso, tem-se a narração que agora se encontra aqui escrita:

Quando Orunmilá, Ogun e Oxalá resolveram visitar o “mercado de sofrimento”, foram aconselhados a não ir logo, pois a ida ao mercado requeria, acima de tudo, que se tivesse paciência e resignação. Sabia-se que a pessoa que fosse capaz de suportar os sofrimentos existentes no mercado e que visitasse o local por três vezes receberia tesouros incomensuráveis.

O primeiro a tentar realizar essa difícil jornada foi Orunmilá. Muniu-se de búzios e quando chegou ao mercado, ajoelhou-se perante o porteiro, cujo nome era Cabra, e pagou o pedágio cobrado para que seu acesso fosse liberado. Orunmilá fez isso por três vezes e pôde receber o que tinha direito. Oxalá também quis fazer o mesmo que Orunmilá, só que este o aconselhou a não realizar tão difícil jornada, pois no mercado havia mesmo muito sofrimento. Oxalá reagiu afirmando: “Quem tem paciência para criar tantos filhos como eu, tem paciência para tudo!”
E assim seguiu Oxalá até o mercado. Ele pagou o pedágio a outro porteiro, chamado de Caracol. Oxalá fez isso mais duas vezes e recebeu o que lhe cabia. Chegando a vez de Ogun, este recebeu o alerta de que não poderia entrar no mercado portando sua faca e seu bastão. Por ser muito temperamental, e movido pela impulsividade, lá se foi Ogun com a faca e o bastão escondidos sob a roupa.

Chegando ao mercado, encontrou o porteiro Cão que cobrou o pedágio a Ogun, que achou uma afronta pagar algo para Cão, seu inimigo/amigo. Ogun, então, usou sua faca para decaptar Cão. Exu, que era o proprietário do mercado, ameaçou tanto Ogun que terminou por fazer com que ele fugisse para o mato. Os galhos e espinhos das árvores rasgaram a roupa de Ogun que, para se proteger, retirou folhas de palmeira (màrìwò) para cobrir o corpo desnudo. Ogun não respeitou as regras do Mercado de Sofrimento; não respeitou o sofrimento, e por isto foi severamente punido.

O sofrimento tem normas que precisam ser aceitas e cumpridas. Duas delas são a resignação e a paciência. Entretanto, a mais importante de todas elas é o respeito a sua própria dor e, consequentemente, à dor do outro. Escrevi este artigo por necessidade: uma necessidade de alma; uma necessidade cidadã. A indignação foi quem me guiou.

É impossível para qualquer cidadão, seja ele um religioso ou não, calar-se diante do fato ocorrido com a coreógrafa Deborah Colker e sua família, no dia 19 de agosto, no aeroporto de Salvador. Em pleno século XXI, quando os meios de comunicação estão sempre notificando os problemas de saúde de ordem genética, nenhuma desculpa existe para o fato de alguém ser discriminado por ser portador de uma delas, usando-se o argumento de que os passageiros do avião corriam risco de contágio.

A ignorância é sempre muito atrevida! Para toda família Colker, desejo força e vitória na jornada, lembrando a sabedoria de um provérbio africano que diz: “Se não suportamos o sofrimento que enche um cesto, não receberemos os favores que enchem uma pequena cabaça de beber.” Garotinho encantador, que sua jornada seja encantada e iluminada; que as pedras e pedradas encontradas sejam, uma a uma, retiradas.

Maria Stella de Azevedo Santos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. 

 

 

Fonte: A Tarde 

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