O filme não explora apenas o que significa ser um homem negro e gay, mas o que significa ser homem.
Por Zeba Blay, do Huffpost Brasil
As imagens da dor negra, da pobreza e da violência sempre foram mais palpáveis e mais atraentes para quem controla as portas de Hollywood. São pessoas que adoram narrativas familiares de privação de direitos em resposta ao persistente problema da diversidade na indústria do cinema. Pense em “Preciosa – Uma História de Esperança” ou qualquer filme escravo nos últimos 20 anos. Tudo brilhante e necessário, mas esses filmes todos têm narrativas familiares. Na superfície, “Moonlight” cumpre todos os requisitos, com a história de um menino negro e pobre lidando com uma mãe abusiva, viciada em drogas, assédio na escola e um traficante de drogas que cumpra a figura do pai.
Mas o filme é muito mais do que uma coleção de clichês lindamente embalados. Ele não busca meramente fetichizar a dor negra. Não explora ou sensacionaliza a confusão muito real vivida por muitos negros gays. O filme subverte os estereótipos da masculinidade negra, ao mesmo tempo em que reconhece que esses estereótipos existem e explora o dano espiritual que esses estereótipos podem provocar. É, em outras palavras, um retrato holístico e humano de um homem negro como um indivíduo, não uma idéia, um truque ou uma lição.
Há uma cena em “Moonlight” em que Chiron, ainda menino, passa um dia na praia com Juan (Mahershala Ali), um traficante de drogas que passa a cuidar dele. “Em algum momento você tem de decidir por si mesmo quem você vai ser”, Juan diz ao jovem Chiron. “Não deixe que ninguém decida por você.”
É um conselho universal, mas é um conselho que assume um tom e um teor diferentes para meninos negros. Meninos negros, que até na infância são vistos como homens. Meninos negros, cuja própria existência foi transformada em arma contra eles. Meninos negros, que, não importa quem eles realmente “decidam” ser, geralmente têm suas identidades decididas pela sociedade antes mesmo de terem a chance de crescer plenamente.
Isso é ilustrado lindamente no segundo ato do filme, intitulado “Chiron”. O protagonista, agora um estudante tímido assediado por valentões por ser demasiadamente “feminino”, divide um baseado com um amigo, Kevin, em uma praia. Lá, ele tem a primeira experiência sexual real com Kevin, um momento de verdade e intimidade que o ajuda a se tornar quem ele é. Mas no dia seguinte, antes que ele possa saborear esse despertar, um bully força Kevin a espancar e humilhar Chiron na frente de todos os colegas. Esse momento é o catalisador de um Chiron completamente novo, diferente, um Chiron incapaz de navegar pelo mundo sem armadura e autonegação.
É muito significativo e importante que um filme abordando a questão da identidade do homem negro e a da masculinidade negra se concentre em um homem gay. Já era hora. Como o escritor Michael Arceneaux aponta em seu artigo para o site Complex, em “Moonlight” tantos negros heterossexuais enxergam os negros gays como “menos que homens, porque somos homens sentimos atração por outros homens”.
Arceneaux acrescenta: “Homens de todas as raças têm lidado com a misoginia dá origem à homofobia, mas os negros têm de lidar com uma rígida idéia de masculinidade. Esses homens acham que estão protegendo a masculinidade negra quando, na realidade, eles estão apenas servindo como fantoches das regras de gênero derivadas do patriarcado branco”.
“É muito significativo e importante que um filme abordando a questão da identidade do homem negro e a da masculinidade negra se concentre em um homem gay.”
A masculinidade é uma coisa tão frágil. A masculinidade negra é especialmente pesada. Os homens negros foram submetidos a uma história de violência, desprezo e emasculação ao longo de séculos. A conseqüência é um mar de almas incapaz de lidar com uma dor sem nome.
Mas há beleza na vulnerabilidade, e alguns dos momentos mais bonitos de “Moonlight” são aqueles em que Chiron tira a armadura, deixa cair a máscara. É por isso que todo homem negro, heterossexual ou gay, precisa assistir esse filme. À sua própria maneira, ele trata das narrativas que foram jogadas sobre os homens negros, as narrativas que eles tiveram que aceitar, especialmente a que diz que ser gay significa ser fraco e, portanto, não um homem.
Há uma música chamada “Scales” no disco de Solange “A Seat At The Table” que parece um eco auditivo do novo filme de Barry Jenkins. Cantando sobre um jovem negro na correria, Solange canta:
“Você é um superstar
Você é um superstar
Sempre brilhando na noite
E sua pele brilhando ao luar.”
No interlúdio antes da música, Master P explica de onde veio sua famosa frase “make ‘em say uhhn”.
“Porque eu nunca chorei nem nada do tipo… isso é como a minha dor. Esse é o meu grito de guerra.”
“Moonlight” é seu próprio grito de guerra, ou talvez um chamado para os homens que nunca choraram, que tiveram de vestir armaduras físicas e espirituais para navegar o mundo. Ele desafia nossas ideias do que significa ser homem, especialmente homem, negro e gay.
Muito do gênero tem a ver com performance, performance como afirmação e sobrevivência. Ver essa performance em “Moonlight”, desconstruída, é algo profundo. Algo que todo homem negro deveria ver.
Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.