Por que você não gosta de falar sobre violência obstétrica?

Tive uma experiência maravilhosa participando do lançamento do filme Freedom for Birth com outras mulheres e homens, militantes, mães e pais, profissionais da saúde, enfim, numa sala de uma universidade no Rio. O filme traz uma abordagem diferente, colocando em destaque os Direitos Humanos e o papel da regulação do Estado quanto ao direito das mulheres escolherem a forma de seus filhos nascerem. Empolgante! Depois da seção, houve um debate muito interessante sobre os problemas do Brasil, sobre os motivos que levam ao nosso alto índice de cesarianas e às condições adversas dos partos normais hospitalares. E uma das questões levantadas foi a dificuldade que, nós, militantes do parto natural, temos ao tentar abordar o assunto com pessoas que não costumam pensar sobre ele.

Não é raro a gente ver mulheres super sensibilizadas reagindo negativamente às nossas investidas de defender o parto natural e denunciar cesarianas desnecessárias. Não é raro vermos mulheres na defensiva quando atacamos seus obstetras “cesaristas”, ou mesmo quando apenas criticamos o sistema de assistência ao parto e nascimento do país. Mesmo as avós tem dificuldades em compreender a escolha de uma parturiente por um parto domiciliar ou por um parto hospitalar sem anestesia. Eu mesma, até hoje, testemunho os olhos arregalados das pessoas quando afirmo que pari sem anestesia – como se isso fosse completamente anormal! Acho também que muita gente se incomoda com essa mania que as militantes tem de “colocar o dedo na ferida”, de pontuar posturas nada éticas e honestas de alguns profissionais que induzem suas pacientes a partos ou cirurgias antes da eminência do trabalho de parto normal. As pessoas se incomodam com nossos esforços para mudar o status quo da obstetrícia. Mas por que? Será que são todos uns iludidos ou preguiçosos que não querem se questionar, que preferem não pensar sobre assuntos polêmicos? Será que as pessoas preferem deixar as coisas como são, mesmo tendo elas mesmas memórias nada agradáveis sobre seus partos cheios de intervenções médicas ou cesarianas desnecessárias? Será que as pessoas não querem um sistema mais humano, um atendimento médico mais respeitoso, a liberdade e a autonomia para escolher a via de nascimento?

Eu acho que não é bem por aí. Não acredito que as mulheres esqueçam do que viveram em seus partos. Não acredito que a experiência invasiva de uma cesariana seja tão facilmente ignorada e superada – como deve ser doloroso começar a amamentar seu filho enquanto se recupera de uma cirurgia desse porte! Não acho que seja uma resistência simples e confortável para as mulheres que preferem “não pensar” no assunto. Depois de estudar um pouquinho sobre violência de gênero e saúde e de conviver com militantes e resistentes à mudança, chego à conclusão, mais do que nunca, de que por trás dessa dificuldade enorme de se tocar no assunto está um problema muito maior e mais arraigado em nossa cultura: a desigualdade e o silenciamento a que nós, mulheres, somos submetidas todos os dias. É difícil falar de uma experiência invasiva de parto assim como é quase impossível nomear um abuso sexual, uma agressão sofrida do próprio parceiro amoroso, uma discriminação negativa no trabalho devido ao gênero. É muito difícil encarar de frente a questão da violência, seja ela física, verbal, psicológica – e mais ainda, quando ela é consentida e testemunhada por todo um sistema que se cala. Afinal, assim como ocorria nos tempos dos manicômios, nos fazem acreditar que “se com todo mundo é assim, então meu sofrimento é anormal!”.

Quando eu fiz estágio na Fiocruz, atendendo a grupos de mulheres do Centro de Saúde, percebi o quanto a violência doméstica se perpetuava por causa do forte pacto de silenciamento que mantinha a relação da vítima com seu agressor. A falta de consciência de suas próprias forças e recursos para lutar contra a agressão fazia com que as mulheres reproduzissem sintomas psicológicos e físicos diversos, passando por longos sofrimentos até entenderem que o maior de todos os males era a manutenção das relações de violência. O poder que o agressor tinha sobre elas era também consentido. E como é difícil admitir que você mesma consente com algo que lhe faz sofrer! É muito difícil admitir que o poder daquele que a oprime foi também reforçado por você.

Mas, se descartar um marido violento não depende apenas da capacidade de lutar contra ele, confiar plenamente no Doutor é uma escolha, ainda que você não possa escolher ser atendida por outro Doutor. Você pode confiá-lo de forma consciente, ou não. E mesmo que seja difícil demais nadar contra a corrente e afirmar que a sua “loucura” é afinal mais saudável do que o status quo, você pode se aliar a outras pessoas que tem essa consciência e especialmente a outras instâncias coletivas que sancionam seu incômodo. Lembre-se que a própria Organização Mundial da Saúde preconiza que a mulher deve ter liberdade de escolha quanto a forma de nascimento de seu bebê, e que o ideal é um número máximo de 15% de cesarianas em cada país.

Mas se por conta das circunstâncias, você se submeteu a uma relação de poder desigual e invasiva, na qual o Doutor decidiu tudo e você pouco foi consultada, entendo que seja realmente difícil encarar à posteriori que você se submeteu, na verdade, a uma relação violenta. Não que você deva se considerar uma vítima! Aliás, uma das estratégias da terapia que a gente desenvolvia com as pacientes que sofriam violência doméstica, por exemplo, era ajudá-las se livrarem do fardo de vítimas para se posicionarem como testemunhas recorrendo aos dispositivos legais de proteção. E quando esse processo chegava ao fim, elas tinham encontrado seus recursos, se aliado com quem poderia lhes fortalecer, e se livrado da violência. Elas se livravam do agressor e dos sintomas. Quem se percebe vítima de um sistema de violência ao parto e ao nascimento, no Brasil, pode recorrer aos grupos organizados que militam nesse campo, à legislação que garante alguns direitos importantes, como o acesso a um acompanhante no trabalho de parto e a escolha do local de parto, e também ao que preconiza os Direitos Humanos.

Certamente, não é uma luta fácil, e com certeza, qualquer mulher preferiria levar sua gravidez sem ter que lutar contra o sistema que deveria acolhe-la. Mas, o mundo em que vivemos está muito longe de ser justo, e só ganhará uma perspectiva melhor para as mulheres quando lutarmos, diariamente, contra as opressões silenciosas que adentram nossas casas e nossos corpos.

 

 

Fonte: Blogueiras feministas 

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