Por um feminismo plural: o ativismo de Lélia Gonzalez no jornal Mulherio

Para Miriam e Camila, irmãs queridas que vivem em mim.

Quis o destino que Lélia de Almeida Gonzalez nos deixasse em 10 de julho de 1994, aos 59 anos. Passados 18 anos de sua morte, o seu legado tem um valor inenarrável para o entendimento das relações raciais e de gênero no país, nas últimas três décadas.

A trajetória de Lélia Gonzalez muito se assemelha a da maioria das mulheres negras deste país. Antes de ser reconhecida no Brasil e no exterior pela sua militância e pelo seu trabalho intelectual, na infância, Lélia passou pelo emprego doméstico, conforme relatou em uma entrevista concedida ao jornal O Pasquim, no ano de 1986:

Quando criança eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que criança negra começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse para casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da asa. Eu reagi muito contra isso então o pessoal terminou me trazendo de volta para casa. (n. 871, p. 8-10)

Meu “encontro” com Lélia se deu no passado, durante a realização de uma pesquisa sobre a imprensa feminina e feminista no Brasil, da qual participo como bolsista. A meu ver, um encontro proposital, já que não acredito no acaso.

De posse da coleção completa do Mulherio (1981-1988), publicação importante do movimento feminista brasileiro, me deparei com 5 (cinco) artigos de Lélia Gonzalez, publicados entre 1981 e 1984, período em que ela compôs o conselho editorial do jornal.

Ao esmiuçar os seus textos e buscar outros caminhos que permitam recuperar toda ou parte de sua trajetória como colaboradora do Mulherio, me deparei com uma mulher corajosa, intensa, desafiadora, consciente da necessidade de inclusão do quesito raça nos debates e lutas do movimento de mulheres, permitindo dessa forma a “revalorização da mulher negra, tão massacrada e inferiorizada por um machismo racista, assim como por seus valores estéticos europocêntricos”. (“Beleza negra, PI: ora-yê-yê-ô.” Mulherio, ano II, nº 6, março-abril de 1982, p. 3).

Na época, compunham a equipe do Mulherio figuras proeminentes da intelectualidade e do movimento de mulheres brasileiro, como Eva Alterman Blay, Fúlvia Rosemberg, Cristina Bruschini, Ruth Cardoso, Heleieth Saffioti, Maria Rita Kehl, dentre outras.

Lélia era a única negra a participar do projeto mantido pela Fundação Carlos Chagas. Diante disso, me vieram algumas perguntas: como terá sido a passagem de Lélia pelo Mulherio? Como era sua relação com as demais companheiras? De que maneira suas ideias eram vistas?

Sabemos que, por vezes, a relação entre mulheres brancas e negras no movimento feminista também é marcada por conflitos, tendo sido Lélia chamada por diversas vezes, durante sua militância de “criadora de caso”. Nesse sentido, as afro-brasileiras encontravam-se diante de uma encruzilhada. Se por um lado as implicações das reminiscências do período escravocrata na vida das mulheres negras ganhavam pouco espaço no movimento feminista, por outro, o pensamento machista e patriarcal do Movimento Negro impedia a inclusão do fator gênero no projeto político da organização.

A saída encontrada por Lélia e por outras militantes negras foi a criação de grupos e organizações de mulheres negras, essenciais para o debate acerca da posição de subalternidade na qual estavam inseridas às afrodescendentes, dentro e fora do movimento feminista.

Lélia, ao problematizar e denunciar em seus “artigos-provacações”, o processo de marginalização sofrido pelas afrodescendentes na sociedade, o emprego doméstico e suas raízes históricas, imprime novas cores às páginas do Mulherio e do movimento de mulheres, contribuindo assim para o tão necessário enegrecimento do feminismo. Através de seus textos, busca a pluralidade do movimento de mulheres que, em sua luta pela inclusão feminina na sociedade, muitas vezes excluiu ou tratou a mulher negra como um ser invisível em suas reivindicações.

Lélia Gonzalez estreia nas páginas do Mulherio com um texto sobre o mito da democracia racial, ideologia forjada nos anos 30 do século passado, que incutiu no imaginário popular a ideia de que a miscigenação é fruto da convivência harmoniosa existente entre indígenas brancos e negros, conforme defendido por Gilberto Freyre na obra “Casa Grande e Senzala”. A antropóloga mineira rebate com veemência essa tese, ao apontar que o “cruzamento de raças” foi fruto da violência e estupro praticados pelos portugueses contra as mulheres negras no período colonial:

É por aí que a gente deve entender que esse papo de que a miscigenação é a prova da “democracia racial” brasileira não está com nada. Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos a mulher negra: de que ela é mulher fácil, de que é boa de cama. (Mulherio, ano I, nº 3, setembro/outubro de 1981, p. 9)

O “artigo/provocação/denúncia” “E a trabalhadora negra, cume que fica”, expõe várias questões. Primeiro, o uso da linguagem coloquial observado já no título. A escrita sem rebuscamento de Lélia era uma tentativa de aproximação das camadas populares que, na maioria das vezes não tinha acesso a sua produção intelectual. Outro ponto que podemos mencionar é a denúncia do tratamento dispensado às mulheres negras no mercado de trabalho. Para Lélia, as empregadas domésticas do seu tempo se assemelhavam às “mucamas” de outrora:

Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossas antepassadas: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere muito da “escrava do eito” de ontem; o mesmo poderia dizer-se da vendedora ambulante, da “joaninha” da servente ou da trocadora de ônibus de hoje, é a escrava de ganho de ontem. (…) O 13 de maio trouxe benefícios para todo mundo, menos para massa trabalhadora negra. (Mulherio, ano I, nº 4, novembro/dezembro de 1981, p. 9)

A produção intelectual de Gonzalez revela uma mulher à frente do seu tempo. Na década de 1980 ela já questionava a representação do negro nos livros didáticos, a ausência da população negra e dos indígenas nos Anais da História e a perpetuação dos privilégios, característica marcante da sociedade brasileira:

Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles. E o que é que fica? A impressão de que só homens, os homens brancos, social e economicamente privilegiados, foram os únicos a construir este país. A essa mentira tripla dá-se o nome de sexismo, racismo e elitismo. E como ainda existe muita mulher que se sente inferiorizada diante do homem, muito negro diante do branco e muito pobre diante do rico a gente tem mais é que mostrar que não é assim, né? (Mulherio, ano II, nº 5, janeiro/fevereiro de 1982, p. 3)

Resgatar a trajetória de Lélia Gonzalez faz parte da minha batalha “pela criação de um mundo humano – que é um mundo de reconhecimentos recíprocos”. Na condição de mulher, negra, feminista e cidadã, pretendo contribuir, mesmo que timidamente, para o processo de valorização e reconhecimento de minhas irmãs de cor, cujo percurso é marcado preponderantemente por violências, negligências e silenciamentos.

Ainda que a minha pesquisa esteja em sua fase inicial, as primeiras descobertas são animadoras e só reforçam a importância de Lélia Gonzalez para nós mulheres negras e para todos aqueles e aquelas que possuem compromisso com a justiça social.

Retifico o primeiro parágrafo deste texto: Lélia não nos deixou. Lélia VIVE!

Por: Luana Tolentino 


Luana Tolentino – mulher, negra, canhota, gêmea univitelina.

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