Por um letramento histórico e racial 

Apresento este texto a partir da pesquisa que desenvolvi no mestrado, onde investiguei a construção de identidade racial e experiências de racialização de jovens estudantes do Ensino Médio na mobilização de suas consciências históricas, presentes nas narrativas produzidas pelos discentes sobre o tema. A partir da minha experiência como professor-pesquisador com os debates no cotidiano escolar, nas aulas de História com jovens e das reflexões sobre aprendizagem histórica, identidade e pertencimento racial, embasei-me nos fundamentos teórico-metodológicos da Didática da História e do Letramento Racial.

O estudo possibilitou analisar elementos do processo de aprendizagem histórica e de construção da identidade racial, conduzindo a proposições de como o ensino de História precisa promover o letramento histórico e racial. Os dados produzidos demonstraram que uma cultura histórica sobre raça no Brasil manifesta-se nas ideias dos alunos, e que, por meio do ensino de História, é plausível sofisticar e ampliar um repertório sobre raça e racismo que seja capaz de dar conta das tensões raciais que impactam sua vida prática.

Neste breve artigo apresento um diálogo possível entre a Didática da História e o conceito de Letramento Racial. Primeiro, exponho o surgimento, no meio acadêmico brasileiro, da conceituação de letramento racial.

Letramento racial no Brasil

No Brasil, o conceito de letramento racial surgiu, pela primeira vez, em 2012 no campo da Psicologia Social, por meio da tese de doutorado na qual a autora e pesquisadora Lia Vainer Schucman realizou uma análise sobre a branquitude. Em 2014, partindo de outro caminho, a partir da educação e da linguagem, e com o foco nas identidades negras, Maria Aparecida Ferreira nos traz o letramento racial crítico criado a partir de sua análise teórica de diversos autores da Teoria Racial Crítica (TRC). Assim, podemos dizer que no Brasil, há uma divisão do uso do letramento racial nessas duas vertentes.

Em Maria Aparecida Ferreira, ao privilegiar a análise das narrativas de quem sente a experiência dos processos de racialização em seu cotidiano, a TRC parece se apresentar como base para as suas pesquisas, como forma de acessar as memórias e resgatar a história para a transformação das relações raciais. Em Lia Vainer Schucman, o comportamento social de indivíduos brancos constituiu-se como elemento principal de suas análises. Ela importou o conceito de Letramento Racial da pesquisadora americana France Winddance Twine, onde este nasceu, das primeiras inspirações que a estudiosa teve ao entrar em contato com escritos sobre questões raciais de mulheres brancas nos Estados Unidos da América. Foi desenvolvido em um trabalho etnográfico por quase dez anos, entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, com famílias inter-raciais britânicas e americanas.

Mesmo que Twine parta de uma análise sobre as práticas de sujeitos brancos, as mais variadas dimensões do letramento racial manifestam-se para além do comportamento social de indivíduos brancos, podendo alargar os seus usos para os grupos que são negativamente racializados. Assim, a socióloga afro-americana traz seis pontos sobre o seu letramento racial: 1) o racismo como um problema contemporâneo; 2) um entendimento das formas de experiências de racismo e racialização interseccionado com sexualidade e gênero; 3) o reconhecimento da branquitude; 4) que identidades raciais são aprendidas e uma consequência das práticas sociais; 5) a posse de um vocabulário e gramática racial para debater raça, racismo e antirracismo e 6) saber interpretar códigos raciais e práticas racializadas.

Letramento histórico e racial

Os pontos do letramento racial expostos acima podem ser articulados, enquanto instrumento analítico, com a Didática da História. Quando analisamos a primeira proposição, na qual se afirma que o racismo é um problema contemporâneo, isso significa que partimos de sua compreensão no presente para então refletirmos ou agirmos sobre ela. Essa reflexão acontece com os elementos do passado (história), porém, mais do que isso, é nas relações entre as diferentes temporalidades, que o historiador alemão Rüsen afirma que a consciência histórica fornece base ao conhecimento histórico como uma ferramenta para entender o presente e antecipar o futuro. É a partir das carências de orientação do sujeito no tempo presente como, por exemplo, compreender o racismo na atualidade, que o permite refletir sobre a sociedade em que vive inserida em uma realidade histórica e realizar seu posicionamento individual e coletivamente diante do problema.

No segundo e terceiro pontos, racismo e racialização operam vinculados à heteronormatividade e à branquitude, a uma cultura histórica que possui formas de comunicação e padrões de pensamento. É função da própria Didática da História, segundo Rusen, desconstruir, problematizar, perceber a cultura histórica como um processo objetivo de aprendizado. Ou seja, o eco encontrado em nosso país é visível na impunidade que se apresenta nos relatos de crimes de racismo ou na própria negação desse tipo de questão. Assim, se práticas sociais racistas são aprendidas em diversos contextos sociais, a aprendizagem histórica tem por função a tentativa de superação desse quadro.

Capa dos livros “A White Side of Black Britain – Interracial Intimacy and Racial Literacy” e “Jörn Rüsen e Ensino de História”. 2023. Fonte: coleção pessoal do autor.

No item quatro, que apresenta as identidades raciais como consequências de práticas sociais, considerando que essas identidades são históricas, estas se articulam à dimensão da cultura e da consciência histórica. Nesse caso, por exemplo, a realidade racial brasileira é forjada desde o período colonial, passando por processos de embranquecimento desde o século XIX e pela ideologia da democracia racial na década de 1930, que fundamentou posicionamentos sociais e políticos de negação da existência do racismo no Brasil. A força dessa ideologia se renova mesmo contrastada com os inúmeros casos de racismo, injúrias e tentativas de apagamento racial que ainda aparecem na segunda década do século XXI. Diante desse cenário, é possível utilizar a metodologia da Didática da História nos processos de formação dos sujeitos negros, como forma deles se apropriarem das narrativas históricas e se posicionarem em suas vidas práticas. Assim, eles têm a possibilidade de reinterpretar experiências individuais e coletivas em seus processos de construção identitária.

Os itens cinco e seis podem ser pensados a partir de uma perspectiva em educação histórica, pois se falamos em um vocabulário racial, estamos lidando com conceitos substantivos como raça, racismo, preto, negro, branco, antirracismo, colorismo, entre outras palavras que se apresentam em narrativas sobre raça. O papel da aula de História é analisar esse vocabulário como conceitos históricos, a partir dos conceitos metahistóricos, com o objetivo de aprimorar a interpretação desses códigos raciais e práticas racializadas em um processo de mudança estrutural da consciência histórica, como afirma Rusen. A Didática da História e o Letramento Racial compartilham da centralidade da narrativa como material que expressa ideias históricas (sobre raça) e como fonte para a análise dessas mesmas ideias. Ela, a narrativa, é constituidora e constituinte dos processos de aprendizagem histórico e letramentos.

Desse modo e com a devida cautela metodológica, podemos propor um diálogo com o conceito de Letramento Racial para sugerir um debate racializado como elemento capaz de auxiliar no refinamento de metodologias de ensino de História e educação das relações étnico-raciais. Com vistas a promover maior desenvolvimento da consciência histórica dos estudantes, agindo especificamente sobre a temática da identidade racial e podendo conquistar, assim, novos significados e relações sobre as questões raciais através do desenvolvimento da competência narrativa.

Com uma lente de aumento, ao privilegiar a análise das narrativas de quem sente a experiência de processos de racialização em seu cotidiano, o Letramento Racial, atrelado à Didática da História, pode contribuir para a transformação das relações raciais com intenções assertivas no combate ao racismo e na complexificação dos processos de racialização, de forma a enfrentar o domínio da branquitude. Destaco ainda que as relações sociais são atravessadas por essas questões e se materializam de forma negativa para quem sofre os horrores do racismo e beneficia quem possui privilégios. Como evidência dessa realidade cruel e historicamente estruturada, podemos tomar como exemplo o currículo da disciplina História, na sua formação e nas permanências, mesmo após processos de crítica e de renovação, a inclusão da Lei nº 10.639/03 e os baixos rendimentos das escolas públicas, como algumas das manifestações do racismo desmedido.

Finalmente, concluo que ao nos valermos da Didática da História, analisando teoricamente as questões da aprendizagem histórica como processo de desenvolvimento da consciência histórica, de construção de sentidos de orientação para a vida prática subjetiva e objetiva (individual e coletiva), trazendo elementos para refletir como os alunos apreendem um determinado conhecimento histórico (que neste caso específico se dá no campo das relações étnico-raciais) e tendo como pressuposto analítico o Letramento Racial, a minha hipótese sustentada durante a pesquisa, portanto, foi a de que é necessário um letramento racial por meio do conhecimento histórico, que na pesquisa de mestrado enfatizei sob o termo de “Letramento Histórico e Racial”. 

Para um ensino e aprendizagem eficaz das relações raciais nas escolas, é necessário que o debate público sobre raça se concentre em um letramento histórico e racial que não seja uma mera recordação de fatos somente ligados ao povo negro, mas sim a visão ampla de um processo que se ergueu sistematicamente pela branquitude na sociedade brasileira enquanto cultura histórica. Assim, será possível desenvolver um conjunto de ações, habilidades específicas e conceitos capazes de mediar a manifestação da consciência histórica sobre raça de alunos e alunas.

Assista ao vídeo do historiador André Lemos no Acervo Cultne sobre este artigo:

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais).


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.


André Lemos

Telefone: (21) 998325485 

Licenciado em História (UFRRJ); Especialista em História da África e do Negro no Brasil (UCAM); Mestre em Ensino de História (UFRRJ); Professor de História da SEEDUC-RJ

E-mail: [email protected]

Instagram: @lemosandrerj

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