Por um movimento LGBT mais transversal

Lutas pela livre expressão da sexualidade serão muito mais sólidas se articuladas com as de outros setores oprimidos. Pois o conservadorismo que atinge os LGBTs é o mesmo que se volta contra pobres, negros ou sem-teto

Por Marcos de Jesus Oliveira Do Racismo Ambiental

Com o fechamento da exposição QueerMuseu: cartografias da diferença na arte brasileira sob os auspícios do Santander Cultural de Porto Alegre, em resposta a protestos protagonizados por setores da sociedade civil, tornaram-se mais evidentes os contornos do que poderíamos designar de “ativismo anti-gênero” ou, mais especificamente, de “ativismo anti-LGBT”, no Brasil. Para não cairmos na falsa compreensão de que esse ativismo é algo inteiramente recente ou invenção dos últimos anos, é preciso ter no horizonte que a sociedade brasileira é, seguindo as formações sociais ocidentais, marcada por desigualdades e violências de gênero de inúmeros tipos e de várias ordens desde o processo de colonização. Nem mesmo a redemocratização dos anos de 1980 e sua promessa de construção de uma cidadania inclusiva conseguiram garantir os direitos humanos de LGBTs, já que o Brasil continua responsável por um alto índice de assassinatos e de agressões a LGBTs, um dos maiores do mundo.

O ativismo anti-gênero seria antes um desdobramento de um regime de violência de gênero que atravessa a cultura do país. Na impossibilidade de abordar as diferentes configurações que esse regime vai assumindo ao longo da formação brasileira, serão trazidos à baila alguns acontecimentos da história recente do Brasil com os quais se pretende situar e caracterizar traços do momento presente. Nos últimos tempos, setores da sociedade civil isoladamente ou em articulação com os poderes executivo, legislativo e judiciário vêm desenhando uma série de estratégias, de práticas e de ações com o intuito de fazer retroceder direitos conquistados a duras penas nas últimas décadas por LGBTs. O objetivo parece ser o de enfraquecer debates e políticas públicas de combate à discriminação contra LGBTs bem como evitar a construção de uma cidadania para sujeitos que, cotidianamente, sofrem com humilhações, hostilidades e desrespeitos, seja através do fortalecimento de uma agenda autoritária, conservadora e inteiramente antidemocrática, seja através do recrudescimento de discursos de ódio, alguns destes em uma linguagem “bem-comportada”.

O cenário do ativismo anti-gênero inclui tanto ações mais diretas e incisivas como também ações construídas, a longo prazo, dentro de um espectro político mais amplo, fundamentando-o no que chamam de “ideologia de gênero” (sic). A recente proibição, mediante ação judicial, da apresentação da peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, encenada por uma artista trans no SESC/Jundiaí-SP é a expressão máxima da tentativa imediata de criminalizar as manifestações artísticas dissidentes, impedindo o debate de questões atinentes a LGBTs. A inquisição a manifestações artísticas não é fato novo, estando presente, por exemplo, nas reações homofóbicas ao beijo entre duas mulheres, protagonizado por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg e exibido na novela Babilônia em 2015. Naquele mesmo ano, após haver encenado Cristo crucificado na Parada LGBT de São Paulo, a ativista Viviany Beleboni, além de ter sofrido ameaças, chegou a ser processada judicialmente. Surgiram ainda tentativas de boicote à marca O Boticário por ter feito propaganda do dia dos namorados em que se via um casal gay.

A “lei da mordaça” é aqui o nome dado um conjunto de iniciativas, em níveis federal, estadual e municipal, para criminalizar a ação pedagógica: o Projeto de Lei (PL) 2.731/2015, por exemplo, previa prisão para professores que abordassem “ideologia de gênero”, além de perda de emprego e do cargo; já o PL 1.411/2015 previa tipificação penal para “assédio ideológico” com prisão para “toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico”. Esses projetos de lei expressam a tentativa de criar mecanismos legais para coibir o debate democrático sobre temáticas relativas às desigualdades de gênero na educação, cerceando, como consequência, discussões de maior amplitude. A retirada das menções a gênero, orientação sexual e identidade de gênero do Plano Nacional de Educação em 2014, com efeito cascata nos planos estaduais e municipais, já sinalizava o crescente interesse pela educação como espaço de atuação do ativismo anti-LGBT, tendo sido realizada sob a proteção do Congresso Nacional e com um Executivo, à época, pouco interessado em reverter a situação. O mesmo Executivo ou, mais especificamente, o ministério da Educação, vetou a distribuição de material didático anti-homofobia em 2013 sob pressão da bancada evangélica do Congresso. Naquele mesmo ano e no seguinte, houve ainda vetos em campanhas de prevenção da AIDS do Ministério da Saúde direcionadas a LGBTs.

Na Câmara Federal, a Comissão de Direitos Humanos e Minoria (CDHM) esteve, em 2013, sob a liderança de Marco Feliciano (PSC-SP) e de grupos assumidamente contrários à promoção dos direitos humanos de LGBTs. Durante seu mandato, o deputado aprovou o projeto de lei de autoria de João Campos (PSDB-GO), conhecido por “cura gay”. Pretendia sustar a resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que veta a utilização de “terapias de reversão sexual”. Embora o projeto tenha sido retirado de tramitação na Câmara dos Deputados, a batalha seguiu para o Judiciário, ganhando um desfecho, ainda que temporário, no último dia 15, quando a Justiça Federal do Distrito Federal acatou pedido de liminar. Em nota, o CFP disse que a “decisão liminar do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho mantém a integralidade do texto da Resolução 01/99, mas determina que o CFP a interprete de modo a não proibir que psicólogas (os) façam atendimento buscando reorientação sexual.”. O entendimento dado pelo juiz reacende a possibilidade de tornar a homossexualidade uma doença, implicando um retrocesso às lutas por direitos humanos. Nessa coleção de desatinos e de tentativas de repatologizar a homossexualidade, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), à época na presidência da Câmara Federal, desengavetou projeto de sua própria autoria, o PL 1.672/2011, que tinha como objetivo instituir o “Dia do Orgulho Heterossexual”. O projeto foi arquivado, mas a senha ao ativismo anti-LGBT estava dada e arregimentando cada vez mais forças e adeptos.

A estratégia dos ativistas anti-LGBTs se organiza tanto pela mobilização da opinião pública com discursos de “defesa da família tradicional” e de “respeito à religião ou à fé alheia” ou pelas tentativas de associar as discussões e políticas de igualdade de gênero e de cidadania LGBT a práticas sexuais socialmente condenadas tal como a pedofilia. Nesse panteão, figuras públicas como o já mencionado Marco Feliciano, Silas Malafaia e Jair Bolsonaro (PSC-RJ), apenas para citar alguns, se projetaram politicamente, nos últimos anos, com discursos de cunho homofóbico e transfóbico e com posturas e atitudes altamente conservadoras e reacionárias. Participam ainda do panteão jornalistas e intelectuais de direita com espaço na mídia impressa e digital. Com informações enviesadas e, muitas vezes, equivocadas e descontextualizadas, acabam por recrutar leitores incautos, favorecendo atitudes antidemocráticas e de pouco apreço pelas diferenças.

Tudo isso impõe inúmeros desafios para a luta pela afirmação dos direitos de LGBTs e por uma sociedade sem preconceitos e livre de discriminações de gênero. Alguns setores ativistas pró-LGBT têm utilizado uma linguagem liberal na tentativa de resguardar a liberdade de expressão, sobretudo, em relação às tentativas de criminalização da arte, do pensamento e da ação pedagógica. Embora esses debates tenham sua importância, já que conseguem alcançar o público afeito a esta linguagem, parecem inadequados para entender o caráter estrutural e estruturante da violência contra LGBTs na reprodução das igualdades de gênero. A questão é entender o que se censura, quem censura e sob que circunstâncias, ou, para dizê-lo de outro modo, é preciso colocar o problema no nível das relações de poder altamente assimétricas e desiguais que constituem a sociedade brasileira desde seu processo de colonização. Os privilégios econômicos, sociais e políticos estão, historicamente, nas mãos de homens brancos cristãos heterossexuais proprietários. Sem atacar as estruturas pelas quais esses sujeitos reproduzem a ordem da desigualdade e da violência não é possível pensar em mudanças a longo prazo.

No Brasil assim como na grande maioria das formações ocidentais, a cumplicidade do Estado com a violência contra LGBTs é notória, já que este age também pela retirada de sua proteção ou pelo abandono de determinados sujeitos a sua própria sorte. A ausência de políticas públicas mais efetivas e substanciais para reverter o cenário de violência endêmico contra LGBTs é um dado igualmente importante. A produção de mortes não se expressa apenas por homicídios ou tentativas de homicídio, mas também pela morte simbólica, pela autorização, embora não anunciada, de que sujeitos LGBTs podem ser expostos à humilhação e à hostilidade. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), foram 6.809 casos de desrespeito aos direitos humanos de LGBTs em 2011 e 9.982 em 2012. As ações do Judiciário que impedem atividades organizadas por LGBTs ou que negam o reconhecimento do nome social a pessoas trans, a inércia do Executivo em fazer efetivar o direito à dignidade humana e a falta de preocupação do Legislativo em propor medidas legais para coibir a violência trazem inúmeras implicações à vida e à existência de LGBTs, violando-as. Em outras palavras, estas situações não são meramente fortuitas ou aleatórias, mas compõem as estratégias que garantem os privilégios históricos daqueles que se adequam à heteronorma, mas também daqueles que historicamente detém o poder econômico e político.

Algo assim traz como consequência a necessidade de que o ativismo pró-LGBT não viva isolado do ativismo social de outros grupos, devendo articular e configurar coalizões para o fortalecimento de lutas por democratização. O problema LGBT não é pontual, uma questão apenas de liberdade (de expressão) que deve ser garantida pelo Estado em respeito à diversidade sexual e de gênero. Colocar o problema nesse patamar tende a não questionar as relações de poder, pois o foco fica limitado àquele que é considerado diferente. Articulada à sociedade civil, existe uma parafernália estatal empenhada na violência a LGBTs cujo funcionamento também serve como engrenagem na desumanização de outros grupos historicamente excluídos e estigmatizados. A implicação mais óbvia disso é que muitas são as vítimas de uma série de violências estatais e societais e que é preciso, portanto, situar a luta em defesa dos direitos humanos em um horizonte maior de democratização de estruturas sociais, econômicas e políticas que conformam padrões de privilégios a determinados grupos ou setores. Isso não supõe perder de vista as especificidades e as singularidade dos coletivos e dos sujeitos individuais, mas apenas redimensionar o problema, observando-o de outro ângulo.

O ativismo pró-LGBT precisa construir estratégias para que a luta pela afirmação de direitos não seja entendida como uma questão meramente daqueles autodenominados LGBTs, mas uma cujo fazer tem implicação para uma miríade de sujeitos historicamente excluídos porque democrática e antiautoritária. A estratégia de combate pode, por exemplo, ir em direção ao adensamento de relações com setores progressistas que debatem e discutem os processos de democratização da mídia, já que esta transmite, amiúde, informações equivocadas e com efeitos nefastos para a vida de LGBTs. A luta pela desmilitarização da polícia é outro campo que o ativismo pró-LGBT deve disputar, pois a violência policial contra LGBTs também é enorme. Quem não lembra do caso Verônica Bolina, travesti espancada por policiais em São Paulo? E Laura Vermont, transexual baleada por policiais? Isso para citar apenas os casos de maior repercussão na mídia, já que o assassinato de pessoas trans é algo cotidiano nos grandes centros urbanos do país.

A luta em torno da memória e da verdade é um outro momento importante do ativismo LGBT, já que houve inúmeras perseguições a LGBTs no país durante a ditadura militar e essas perseguições continuam no chamado período democrático. A reforma política que vem sendo debatida há anos por setores progressistas também precisa ser melhor incorporada na agenda de reivindicações de LGBTs. Afinal, é preciso lutar pela criação de mecanismos para que o Congresso Nacional espelhe um pouco mais a diversidade social, cultural, política e econômica do país com vistas à transformação das desigualdades estruturais. O enfrentamento da patologização das identidades trans, dos comportamentos e das expressões de gênero pode, certamente, dialogar com a luta contra a medicalização das condutas e com a luta anti-manicomial bem como com outras lutas no campo da saúde. O direito à cidade e a defesa do direitos dos trabalhadores também são fundamentais para o ativismo pró-LGBT, pois estes sofrem com as exclusões e violências produzidas pelo espaço urbano e com o preconceito do mercado de trabalho. A defesa da liberdade religiosa e a luta contra a perseguição a grupos religiosos minoritários é outra faceta importante do espectro de lutas e de possíveis coalizões.

Tudo isso são exemplos tanto de como o movimento LGBT pode trabalhar para transversalizar debates e ações políticas como também fortalecê-las e, ao fazê-lo, fortalecer a si próprio. Alguns deles já vêm sendo realizado por inúmeros ativistas e o desafio segue imenso, já que alguns setores progressistas da sociedade são, por vezes, resistentes às demandas e às pautas LGBTs. A despeito disso, a aposta é adensar estratégias de ação no horizonte de grupos que vêm apontando o caráter autoritário do Estado e da sociedade. Algo assim poderia ensejar novos modos de combate e de atuação com vistas à transformação de aspectos estruturais na sociedade brasileira bem como a democratização das relações políticas, fundamentais à construção de uma vida livre de discriminação e de preconceito de gênero.

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