Por um SUS da educação

Presidente de fundação com origem na família dos principais acionistas do banco Itaú defende um sistema unificado que aproveite melhor os recursos do MEC

Por Eduardo Marini, da Revista Educação

Para Neca Setubal, a formação dos professores é a maior dívida do Estado e dos governos com a educação brasileira (foto: Tiago Queiroz)

Qualidade do ensino público, cultura, geração de oportunidades para jovens carentes e redução das desigualdades educacionais são temas que mobilizam as atenções da socióloga Maria Alice Setubal. Mestre em Ciências Políticas, doutora em Psicologia pela PUC-SP, herdeira e acionista do banco Itaú, Neca, como é conhecida, optou por dedicar seu preparo e energia ao enfrentamento dos desequilíbrios que condenam gerações de brasileiros à violência, à falta de oportunidades e aos desníveis de aprendizado.

Presidente do conselho consultivo da Fundação Tide Setubal, fundada em 2006, ela detalha, nesta entrevista a Educação, os projetos dessa ONG de origem familiar, hoje dedicada ao desenvolvimento sustentável de periferias urbanas, em regiões carentes de grandes cidades. Neca preside ainda o conselho de administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, o Cenpec, dedicado à produção de conteúdo didático. Acompanhe a entrevista:

Quais são as principais metas da Fundação Tide Setubal?

O trabalho da Fundação não está inserido exclusivamente no universo da educação. Nos primeiros anos, tínhamos como meta o desenvolvimento local da região de São Miguel Paulista, na zona leste da cidade de São Paulo, com jovens e famílias como públicos-alvos. A educação entrava como tema transversal, combinada a questões sociais, ambientais, de relacionamento, promoção de saúde, combate à violência e qualidade de vida. Nos primeiros anos, não atuamos dentro das salas de aula com atenção exclusiva no pedagógico, e sim voltados para essa composição social. Com escolas públicas, diretorias pedagógicas, educadores e famílias, atuávamos mais em formação, nos pontos ligados ao relacionamento entre essas partes em um ambiente com índices preocupantes de violência. Ajudávamos a preparar as partes para a realidade violenta que se expressava em conversas, reações, enfim, na rotina dos contatos entre famílias, jovens e educadores da região. Os resultados foram animadores.

Foram os únicos projetos?

Não. O que descrevi foi a primeira etapa. Em seguida, na gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, houve o lançamento de um programa chamado Ciclo autoral, um pouco mais próximo da rotina das escolas, em que os alunos desenvolviam um projeto em benefício da região nos dois últimos anos do ensino fundamental. Tudo em escola pública. Algumas delas estaduais, mas a maior parte municipal. Quando o programa foi lançado, notamos que os professores estavam aflitos, temerosos de não conseguirem orientar os alunos para o desenvolvimento e a aplicação dos projetos. Por isso, atuamos muito fortemente no Ciclo.

A parceria com a prefeitura no Ciclo autoral deu resultado?

Sim, e muito bons. Projetos de apuro ambiental, alimentação, higiene, uso da escola e outros espaços do bairro, em períodos ociosos, para lazer, eventos artísticos, esportes, entre outros temas. Várias escolas fizeram e publicaram livros explicando os projetos e formaram grupos para a aplicação. Tudo dentro da abordagem sistêmica da Fundação que eu detalhei, ou seja, a utilização de ferramentas disponíveis, e de outras criadas, para aprimorar o ambiente e os relacionamentos de maneira geral, e não apenas o desempenho escolar dos jovens e adolescentes.

E o programa com as merendeiras das escolas de São Miguel Paulista?

Esse foi um projeto que me deixou particularmente satisfeita. Ele relacionava alimentação à saúde com alunos e merendeiras das escolas de São Miguel. As crianças ajudavam a plantar, cultivar, colher. E iam para a cozinha aprender receitas, questões de higiene e a manipular aqueles alimentos com as merendeiras, fazendo comida, sucos, vitaminas e lanches. Por coincidência, a Prefeitura lançou, no mesmo período, um concurso de receitas para escolas públicas. Algumas merendeiras do nosso projeto chegaram às finais e foram premiadas.

E a rede de organizações em São Miguel?

Ela sobrevive até hoje. Criamos a Rede, uma associação de organizações ligadas a vários temas – mulheres, assistência social, saúde, conselhos tutelares, transporte, segurança. Essas organizações se articularam para discutir questões teóricas e casos práticos em busca da solução de problemas locais. Atualmente, a Rede não está formalmente ligada à atual administração municipal, mas continua em atividade. E com o nosso apoio.

A Fundação lidera, há dez anos, uma pesquisa sobre desigualdade e educação, também em São Miguel Paulista. Fale um pouco sobre isso.

Esse projeto é diretamente relacionado à educação. Teve um impacto importante em algumas secretarias e também nos ambientes educacionais públicos e privados. A pesquisa envolveu as escolas nas áreas de maior vulnerabilidade social naquela região. O trabalho mostra como alunos de nível socioeconômico semelhante apresentam índices de aprendizado bem distintos, apesar de todos estudarem e viverem no mesmo bairro.

Como isso é radiografado?

São Miguel Paulista tem uma região mais equilibrada e outra carente em termos financeiros. Esses resultados variam de acordo com o nível de violência do local da escola, que influi diretamente na capacidade de reunião e manutenção de bons professores no quadro. E também nas condições estruturais e dos equipamentos de cada unidade. Nas regiões mais vulneráveis, os educadores faltam mais e as ferramentas deixam a desejar. Quem se interessar em conhecer esse trabalho em detalhes pode visitar o nosso site [fundacaotidesetubal.org.br].

A Fundação ampliou sua estratégia de atuação a partir de 2016. Como foi isso?

Após uma década em São Miguel, com tudo isso que expliquei, fizemos uma discussão interna profunda em 2016. Dela surgiu a decisão de mudar nossa atuação para o apoio a iniciativas de desenvolvimento das periferias de grandes cidades brasileiras, enfrentando as desigualdades e injustiças sociais.

Há algo possível de ser feito com pouco esforço para melhorar a educação pública nessas regiões carentes?

Com pouco esforço, sinto dizer que nada (risos). Se pensarmos apenas em atalhos, iremos conseguir, no máximo, com otimismo, um ou outro diretor de escola maravilhoso, capaz de superar adversidades e de colocar sua unidade em um patamar acima da média. Mas, convenhamos, a educação de um país de mais de 209 milhões de pessoas não pode depender da sorte de encontrar educadores com competência e dedicação fora da média, e em quantidade, o que chamamos de diretores heróis, para ‘salvar’ escolas em grande volume dentro das situações adversas que conhecemos, com poucos recursos. Os heróis, infelizmente, são poucos – e isso não é diferente na educação. Mas se a gente tivesse um bom sistema nacional de educação, por exemplo, a situação melhoraria bastante. O aproveitamento dos recursos seria melhor.

Sistema nacional? Como assim?

Seria algo nos moldes conceituais do que temos hoje, por exemplo, na saúde, com o SUS. Um sistema que gerasse gestão mais eficiente e precisa dos recursos, aliada a avaliações frequentes de resultados e eficiência. Nunca tivemos isso – e podemos imaginar que isso sequer passa pelo horizonte dos atuais gestores. Mas o Fundeb está aí para ser renovado, e isso, claro, precisa ser feito com urgência e boa vontade. As versões anteriores reduziram muito as diferenças de investimento por aluno entre as regiões ricas e pobres, mas é preciso diminuir ainda mais os intervalos. Até mesmo para recuperar os longos períodos em que determinadas regiões registravam índices de investimento por aluno quase 20 vezes maiores do que outras.

E a formação dos professores?

É outro ponto fundamental, talvez a maior dívida do Estado e dos governos com a educação brasileira. Detesto comparar países pequenos e ricos com o Brasil, mas ontem estava lendo algo sobre a educação na Finlândia. A quase totalidade das ações deles envolve o professor, no tripé formação, remuneração e independência em sala. Esse é um exemplo que poderíamos copiar no conceito, no direcionamento.

É uma profissão difícil de ser exercida hoje no país.

Exatamente. Há algo básico: professor, no Brasil, é alguém com uma atividade desgastante, geradora de trabalho em casa e, muitas vezes, envolvida em algum risco. Remunerá-lo melhor vai aprimorar a educação em um pulo? Claro que não, mas atrairá gente qualificada. Porque envolver um profissional em todos esses problemas e limitações e ainda dar remuneração baixa é pedir para os bons escolherem outro caminho. Por ganhar pouco, o professor pula de escola em escola. Nos estados brasileiros em que a educação pública passou a apresentar bons resultados ultimamente, como Ceará e Pernambuco, não por acaso os educadores, quase sempre, se dedicam a uma única escola. Em qualquer atividade, remunerar dignamente significa criar um ambiente para cobrar resultados.

E as desigualdades educacionais, que vocês combatem tanto nessas periferias?

Pois é. Esse é mais um pilar fundamental. Estudamos isso desde que atuávamos apenas em São Miguel, e agora com ênfase ainda maior. Se não enfrentarmos as desigualdades educacionais com seriedade, jamais teremos um projeto educacional com qualidade mínima aceitável. Repito: jamais teremos. Pesquisas e trabalhos apoiados pela Fundação mostram que estamos deixando para trás no mínimo 30% dos alunos brasileiros, que simplesmente não evoluem no aprendizado. Tudo isso está detalhado no Indicador de Desigualdades e Aprendizagens, o IDeA, um trabalho de estudo e pesquisa admirável coordenado por José Francisco Soares, professor aposentado da UFMG e ex-presidente do Inep, com o apoio da Fundação. O portal do IDeA [portalidea.org.br] traz detalhes sobre as divisões dos estudantes envolvidos nessa dificuldade em gênero, condição socioeconômica e etnia.

A senhora defende também a implantação de uma política específica para a juventude. Como ela seria?

Além do Fundeb e da reformulação da política de preparação de professores, penso ser preciso formular, com urgência, uma política para a juventude, que envolveria a qualificação do ensino médio, trabalho e/ou atividades de encaminhamento profissional e cultura. Os jovens estão saindo perdidos dessa fase e a reforma do médio está inexplicavelmente parada no MEC. Estamos atrasadíssimos nisso: a criação de uma política de juventude, articulada com trabalho e cultura. Jovens pobres estão morrendo, sendo assassinados. É preciso dar um basta nisso com urgência.

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