Por uma educação antirracista

Só haverá uma educação antirracista se ela for inclusiva em todos os níveis, para promover o pertencimento a outros grupos sociais

“Esse ato de fala, de “erguer a voz”, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito – a voz liberta.”

– bell hooks

 

Getty Images/iStockphoto

Comemorações do mês de outubro colocam evidência crianças, adolescentes, professores e alunos. Por isto, permito-me refletir sobre onde todos eles se conectam, propondo a construção de uma agenda para as instituições de ensino, considerando o peso que a questão racial possui no ambiente escolar, tornando-o responsável pela perpetuação ou superação de desigualdades.

A história do não-pertencimento
Tempos atrás participei de um curso e quando estava em sala de aula, eu e meus colegas, fomos questionados sobre qual professor havia sido referência na nossa trajetória, no qual projetávamos talvez sonhos, aquele mestre inspirador, de quem se guardavam boas recordações.

Refleti por alguns segundos antes de responder, rabisquei um papel e tentei lembrar desde os primeiros anos nos bancos escolares. Vacilei, silenciei, mas criei coragem e afirmei: “Nenhum!”.

Pois bem, a verdade é que estudei durante quase toda a minha vida em instituições privadas de ensino e, embora na formação escolar tenha tido contato com profissionais da educação maravilhosos, os quais marcaram minha história, minha existência e ocupam lugar especial em meu coração, o que mais se mostrou latente não foi uma presença, mas uma ausência.

Na infância eles foram foram fundamentais na construção de subjetividades, pois contavam histórias incríveis, apresentaram-me o mundo da leitura e da escrita, proporcionando acesso aos conhecimentos que são a base do que disponho e utilizo hoje no cotidiano e no exercício da magistratura. Do mesmo modo, na adolescência e na vida adulta apontaram caminhos que foram importantes para os passos e escolhas que fiz. É essa a razão que esses mestres são detentores de minha eterna gratidão!

Ocorre que, lamentavelmente, minhas memórias não se remetem a imagens da infância ou da academia, nem recordam daquele educador passeando pela sala, ministrando suas aulas, discorrendo sobre sua matéria, levando-me à admiração e às boas lembranças dos bancos escolares.

Incomodei-me por alguns instantes com esse desajuste, já que todos os colegas tinham alguém para apontar como a sua referência na educação.

Pensei: o que havia de diferente em mim para eu não recordar de ninguém, ao contrário das demais pessoas que haviam respondido indicando seus mestres prediletos e descrevendo-os com alegria e regozijo?

Na verdade, eu sempre soube a resposta: não carrego essas lembranças, nem consigo apontar referência porque quase não tive professores negros durante toda a vida escolar e acadêmica. A identificação (ou a ausência dela), nesse caso é um importante recurso da memória.

Ora, não parece um verdadeiro absurdo e até mesmo contraditório que, em tantos anos de vida escolar e acadêmica, não exista uma lembrança de um professor pelo qual eu tenha sentido uma identificação, considerando que a maioria da população brasileira é negra?

Foram oito anos de ensino fundamental, três anos de ensino médio, cinco anos na universidade, especializações, pós-graduação, cursos, seminários, congressos, dentre tantas outras formações, e os professores negros, na maioria destes espaços estavam ausentes, ou na melhor das hipóteses eram os únicos, mesmo se tratando de locais tão importantes para a construção e referência do conhecimento dos indivíduos.

São mais de duas décadas em contato com a educação formal, e mesmo assim não consigo encher as minhas duas mãos elencando quais os professores negros que ministraram aulas, foram palestrantes, conferencistas mentores, ou tutores nos ambientes onde estive como aluna.

Por outro lado, perco a conta se pretender apontar quem eram os mestres não negros presentes durante toda a minha vida, razão pela qual poderia afirmar ter recebido uma educação discriminatória, pois infelizmente o Brasil não reconhece o racismo e consequentemente os vieses racistas se reproduzem perpetuamente ao longo dos anos.

A bem da verdade, as pessoas negras integravam as instituições de ensino, mas sempre o faziam na condição de serviçais, ou seja, eram aquelas que realizavam os serviços de portaria, segurança, cozinha, higiene e limpeza dos ambientes.

Por isto, para mim elas eram a referência sobre qual espaço eu poderia ocupar na sociedade à qual estava integrada.

As feridas na auto-estima de uma aluna negra
Essas imagens colaboraram para a criação de uma identidade com sentimentos de inferioridade sobre a negritude – não que as profissões acima sejam indignas, mas tê-las como única possibilidade de existência acaba por restringir negros e negras a esses postos de trabalho-, com uma noção muito clara sobre a presença de hierarquias raciais. Confesso, não foi fácil superar sentimentos tão ruins sobre mim mesma e sobre o meu próprio grupo, vivendo em ambientes que impunham inferioridade moral, intelectual e estética.

Observo que estudei em escolas particulares – ambientes de livre contratação e dispensa de funcionários -onde, lamentavelmente, profissionais negros não eram (e ainda muito pouco são) opção de escolha para a formação do quadro docente.

Essa triste realidade – de quase total ausência de pessoas negras nos espaços – ultrapassa gerações e está presente nos dias atuais, sem que se tenha mudado muito o quadro no mercado de trabalho, em especial na educação.

Questiono, quantos professores negros há em instituições de ensino da rede privada?

Por exemplo, minhas filhas até hoje receberam aulas de apenas um professor negro nas instituições particulares onde estudaram, o que apenas vem a ratificar a assertiva de que não há inclusão e diversidade no ambiente escolar privado.

São muitos os queixosos acerca da ausência de profissionais negros em todas as instituições, principalmente as particulares de ensino, espaços destinados, via de regra, a pessoas de classes economicamente mais favorecidas.

Consequentemente, a existência de ambientes não inclusivos forma indivíduos que desconsideram totalmente a diversidade racial o que é inconcebível, principalmente quando se está a falar de quem deterá maiores condições de concentrar o poder econômico de uma nação, favorecendo a manutenção da prática de relações raciais que excluem e oprimem.

É assim que crianças, adolescentes e adultos vão sendo formados em instituições ausentes de pluralidade e diversidade no que diz respeito a composição racial de determinados espaços, naturalizando a ausência, cerne do racismo estrutural e institucional existentes em nosso país.

Não bastasse essa ausência de diversidade, percebi durante a minha formação a pouca relevância que foi dada à contribuição dos negros na construção social, cultural e econômica do nosso país. Para a escola, as vidas das pessoas negras até muito pouco tempo eram destacadas apenas em um único dia do ano: o 13 de maio. Era naquela data que, enfim, de um modo geral, os alunos olhavam mas pouco compreendiam a negritude em sala de aula, revelando-se uma verdadeira hegemonia curricular, que privilegia os conhecimentos e as histórias produzidas por pessoas brancas ao redor do mundo.

Atualmente, trocando ideias com pais de alunos, via de regra ouço a afirmação de que algum trabalho foi realizado por seus filhos em sala de aula que remeteu a história e cultura dos africanos e afrodescendentes no Brasil, atividades que em nada se assemelham com aquelas que dizem respeito as histórias contadas sobre os colonizadores e sobre aqueles os indivíduos que livremente aportaram à nossa nação.

A omissão e ausência nos currículos criou em mim (e acredito que cria em todos os alunos) o sentimento de que não importa como pensam ou como pessoas negras compreendem o mundo. Logo, equivale-se a transparecer a ideia (equivocada) de que nada do que se diz e do que se faz terá relevância, advindo desse contexto o silêncio de negros e negras em sala de aula.

Do mesmo modo, essa negação às suas existências enquanto sujeitos de transformação social e de direitos mobiliza em si o entendimento de que aqueles espaços não são para eles, e isso é evidente nas universidades, sendo frequentes os relatos dos acadêmicos com os quais tenho contato, que demonstram sofrimento por entenderem em razão disso que aqueles lugares não lhes pertencem, levando inclusive alguns a desistirem de cursarem o ensino superior. Aliás, isso quando se encorajam a completar a educação básica, não sendo à toa os altos índices de evasão escolar quando se trata da população negra.

Ora, na mesma medida em que apenas pessoas brancas desfrutam dos privilégios de uma educação racista, unicamente negras e negros sabem o preço que pagam por ela e as consequências que se vislumbram ao longo de suas vidas.

A Lei 10.639/03 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação)
Neste sentindo, a mesma escola que nega a participação das diferentes raças no quadro docente ainda hoje, embora a lei 10639/03, não reconhece a composição plurietnica da população brasileira e não ensina sobre a participação do povo negro na construção da nossa sociedade, podendo-se dizer que os currículos escolares confirmam e sustentam o racismo na nossa nação.

Com efeito, o que está em jogo é: como realizar uma educação antirracista sem praticar inclusão racial e sem cumprir a Lei 10639/03 no ambiente escolar?

A experiência, os estudos e os relatos cotidianos demonstram que passados mais de quinze anos da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (“LDB”), pela Lei 10639/03, e posteriormente pela Lei 11645/08, pouco ou nada foi realizado no sentido de implementar de modo efetivo o ensino dessas disciplinas na grade curricular das escolas.

Aponta-se a falta de material didático, de professores preparados para o ensino dessas disciplinas, escassez de cursos de formação, o que dificulta a preparação dos professores que necessitam receber o suporte técnico e metodológico imprescindíveis para que se sintam seguros na apresentação desses novos temas, o que por si só já reforça a ideia de que o sistema é seletivo inclusive na maneira que são preparados para serem formadores.

Contudo, penso que dois outros fatores devem ser ressaltados. Primeiro, a legislação que previu a obrigatoriedade de ensino dessas disciplinas carece de sanção ao seu descumprimento, consequentemente, embora o rico arcabouço normativo disponível, a ausência de uma resposta à conduta omissiva faz das normas letras mortas ao destinatário da lei, já que em uma sociedade que se comporta de modo racista o cumprimento desses preceitos é irrelevante. Segundo, muitos profissionais, bem intencionados ao ensino com a visão multicultural necessária, encontram obstáculos nas relações com seus colegas e com a comunidade escolar, pois não são raras as vezes que as pessoas não querem contato com essas matérias, negando sua relevância na construção da sociedade brasileira.

Sim, existem pais que não desejam que seus filhos utilizem seu tempo de ensino com o aprendizado da História da África, dos Africanos e dos afrodescendentes, o que na verdade revela sua recusa à verdadeira história do Brasil.

Inclusive há relatos de algumas percepções sobre a necessidade da disciplina apenas à população negra, justificando-se não existirem motivos para o ensino de determinadas matérias em ambientes escolares predominantemente brancos, nada surpreendente em um país racista como o Brasil. No entanto, a interpretação a contrário sensu dessa assertiva levaria à conclusão de que pessoas negras também não deveriam aprender sobre a história das pessoas brancas no mundo.

Com efeito, o projeto de lei que promoveu a alteração da LDB em sua exposição de motivos foi claro ao destacar ser a educação um dos principais garantidores da cidadania, razão pela qual ela deve adequar-se à realidade étnica brasileira para corresponder aos diferentes anseios da população.

Portanto, a reformulação substancial dos currículos escolares é imprescindível para que seja resgatada a história do nosso país, bem como para que no ambiente de construção de tantas subjetividades possam se desvelar e desconstruir perfis e práticas que fomentam ou promovem a exclusão e discriminação de determinados indivíduos.

Para além de estar a falar em representatividade e de currículo escolar, questiono aqui qual o ser humano que se pretende formar, a partir da ideia de que a sociedade é composta apenas por pessoas não negras? Pretendemos indivíduos que entendem que pessoas negras podem ocupar apenas determinados postos de emprego nas nossas estruturas?

Pensamos em seres humanos que constroem suas identidades imaginando que brancos detém empregos de elite e negros vagas sem qualificação profissional, relacionando-os às condições de pobreza e incapacidade? Queremos pessoas que compreendem relações entre brancos e negros apenas em subalternidade e subordinação, determinadas pela cor de sua pele?

Almejamos uma escola na qual indivíduos convivem usufruindo de vantagens materiais e simbólicas decorrentes da cor da sua pele?

Sintetizando, como promover uma educação inclusiva, multicultural e antirracista, sem que tenhamos quadros profissionais diversificados racialmente e sem contemplar nos currículos a história da maior parcela da população deste país?

Por isto, inquieta-me cada vez mais a falta de reflexão sobre a ausência de profissionais negros nas escolas: instituições de ensino não pensam e não agem sobre essa realidade; pais e alunos que contratam essas mesmas instituições não pensam e não as questionam sobre essa realidade, será que ela não lhes incomoda?

Inquieta-me também que os espaços educacionais, ricos de saberes, e em especial os privilegiados materialmente, não promovam e não realizem o estudo da História da África e dos Africanos, da luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas sociais, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

A Constituição e o Estatuto da Igualdade Racial

É objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos sem “preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (IV do artigo 3º da Constituição Federal).

Por isto, incumbe ao Estado e a todos garantir, por meio da Educação, iguais direitos para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um enquanto pessoas, cidadãos e profissionais. Sendo portadores de singularidades, estas devem ser respeitadas na formação dos currículos e na constituição do ambiente escolar, caso contrário, reafirmo, não estaremos diante de uma educação antirracista.

O Estatuto da Igualdade Racial prevê no artigo 4º a participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidades, na vida econômica, social, política e cultural do País, que deve ser promovida, prioritariamente, por meio de eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada.

Não é a toa que ações concretas são movidas pelo Ministério Público do Trabalho no sentido de comprometer também a iniciativa privada a promover inclusão racial em seus diferentes setores, o que não deve ser diferente quando se trata de instituições de ensino, uns dos espaços mais privilegiados e propícios para o desenvolvimento e construção de relações raciais, entendendo a diversidade da população do nosso país, colaborando com a criação de identidades que compreendam os indivíduos em sua plenitude.

Não há como realizar uma Educação Antirracista sem praticar inclusão racial, com ambientes nos quais os alunos enxergam pessoas negras apenas em posição de subalternidade, não reconhecendo seus saberes e desqualificando-as.

Além disso, não é possível uma educação antirracista em ambientes totalmente brancos, em evidente hierarquização de papéis, que apenas salientam estereótipos.

Não é possível uma educação antirracista se a escola ocupa-se na construção de conhecimentos a partir de uma visão unidimensional do mundo, advinda de uma matriz cultural eurocêntrica.

Somente haverá uma educação antirracista se encararmos de frente o problema que é a escassez de mestres negros nas escolas e instituições de ensino, o que é marca da discriminação racial contida na desigualdade de acesso à determinadas posições profissionais, inadmissível na educação e em todas as profissões do nosso país.

Apenas haverá educação antirracista se as pessoas compreenderem que toda a alteração legislativa realizada, não está dirigida apenas à população negra, mas a todos os brasileiros, pois apenas assim poderemos conhecer a nós próprios, entendendo-nos nas nossas subjetividades e tratando-nos uns aos outros como iguais, livres de quaisquer barreiras e preconceitos.

Tão-somente haverá uma educação antirracista em escolas que entendam que existem diferentes formas de pensar, saber, ser e viver no mundo.

Apenas haverá uma educação antirracista se pessoas brancas, além de desaprovarem o racismo deixarem de adotar práticas que o reforçam.

Uma educação antirracista é direito básico! Por isto, penso que incumbe aos órgãos com atribuição de fiscalizar a inclusão racial no mercado de trabalho e o cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, viabilizarem uma grande mobilização em torno desse tema, para que instituições de ensino cuidem da eliminação do racismo, dando outras cores ao seu quadro docente e, de fato, realizando o ensino da história e da cultura africanas, destacando o papel da população negra na construção da sociedade brasileira.
Hoje, olhando para trás consigo compreender que ao longo da minha existência experimentei uma educação racista, e é a partir desse olhar que prefiro projetar o futuro, erguendo a voz, como diria bell hooks, na esperança que crianças e jovens possam em breve viver o tempo do antirracismo em espaços de educacionais.

Afinal, conforme leciona Paulo Freire, se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

 

Leia Também:

Clélia Rosa – Trabalhando relações étnico-raciais na educação

 

Por KAREN LUISE V. B. DE S. PINHEIRO, da Carta Capital 

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