Rede de cursinhos gratuitos leva alunos negros da periferia à universidade

Débora Dias, de 21 anos, moradora do bairro de Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo, interrompeu um ciclo que se perpetuava há pelo menos três gerações: bisavó, avó e mãe foram empregadas domésticas e a universidade parecia uma realidade distante.

Por Helaine Martins de Ecoa, Da Uol

Débora Dias - mulher negra, usando turbante azul e brincos de argola.
Débora Dias entrou em universidade pública após o cursinho da Uneafro (Imagem: Arquivo pessoal)

Em 2016, no entanto, Débora conheceu a Uneafro, uma rede de cursinhos comunitários voltada para alunos de escolas públicas de periferia, principalmente negros e negras, e percebeu que poderia não apenas entrar na universidade como também se sentir merecedora de ocupar aquele espaço.

“Eu conseguia dentro do cursinho me sentir pertencente. Além das aulas convencionais e preparatórias para o vestibular, havia o engajamento político, e foi tudo muito importante para eu conseguir me reconhecer enquanto mulher negra e uma pessoa que poderia, de fato, estar na universidade”, conta.

Hoje, Débora é estudante do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ainda atua como voluntária na Uneafro, coordenando o núcleo do bairro da Fazenda da Juta. “Eu tinha uma vontade e a Uneafro fez com que eu a enxergasse como uma real possibilidade.”

Oportunidades replicadas

A oportunidade agarrada por Débora teve origem em uma história semelhante, vivida pelo próprio criador da Uneafro. Quando tinha 17 anos, Douglas Belchior fez o cursinho pré-vestibular da Educafro, iniciativa liderada há 32 anos pelo Frei David, da Ordem dos Franciscanos, e tornou-se o primeiro da família a entrar na universidade. “Depois arrastei meus irmãos, que, hoje, são psicóloga e músico”, conta.

Douglas Belchior- homem negro, vestindo camiseta e boné branco- em pé com a mão no peito
Douglas Belchior é educador e atua pela inclusão da população negra e pobre nas universidades (Imagem: Arquivo pessoal)

Hoje educador e liderança do movimento negro brasileiro, Douglas, 42 anos, relembra que a atuação comunitária sempre esteve presente em sua vida. “Meus pais, apesar de muito pobres, foram referência comunitária nos bairros onde já moramos, nas periferias da zona leste de São Paulo. Donas de casa se encontravam em casa para fazer orações e organizar mutirões para ajudar famílias ainda mais pobres, que precisavam mais que a gente. Então cresci com essa rotina, essa dinâmica em casa”, lembra.

Na escola, ainda menino, ao mesmo tempo em que se envolvia com o Grêmio Estudantil, jogava em um time de futebol de salão que realizava ações sociais. Até que, aos 17 anos, quando entrou no cursinho comunitário que o permitia estudar para o vestibular e ainda incentivava a formação cidadã e política, teve a convicção de que a luta pela transformação social era a sua luta. “Estava no sangue.”

Em dez anos, foi aluno do cursinho, depois bolsista parcial da PUC-SP, formou-se em História, se engajou na luta contra o racismo e por acesso à educação, tornou-se professor voluntário e ajudou a fundar o núcleo de educação de Poá, na Região Metropolitana de São Paulo. Então tomou para si a missão de promover a inclusão da população negra e empobrecida nas universidades: em 2009, optou por deixar a Educafro e formar um movimento independente, fundando a Uneafro Brasil, ao lado de outras lideranças negras oriundas dos movimentos estudantil e sindical e dos cursinhos comunitários e populares.

A Uneafro

A União de Núcleos de Educação Popular para Negras, Negros e Classe Trabalhadora (Uneafro) nasceu com a intenção de ser uma rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores de regiões periféricas do Brasil. Hoje, ela se organiza em torno de 32 núcleos, presentes em comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas com futura ampliação para Minas Gerais e alguns estados do Nordeste.

Foto com os estudantes da Uniafro
Em 2019, a Uneafro comemorou dez anos de atuação. Cerca de 2 mil jovens de escolas públicas são atendidos por ano (Imagem: Lucas Gabriel)

O trabalho mais conhecido são os cursinhos pré-vestibulares comunitários que atendem gratuitamente pessoas oriundas de escolas públicas, principalmente negros e negras, mas também são ofertados preparatórios para concursos, formação para o mercado de trabalho, cursos de formação política, de gênero, antirracista, diversidade sexual, combate às drogas e aperfeiçoamento jurídico.

Segundo Douglas, cerca de 2 mil jovens estudantes de escolas públicas são atendidos por ano e 70% acessam a universidade, passam em concurso ou conseguem um emprego. “É um movimento formado por educadores e ativistas de direitos humanos que entendem que a educação é um instrumento muito poderoso para a mobilidade social, para a oportunidade de melhores condições de vida. Além de ser a principal ferramenta de enfrentamento à violência generalizada que a gente vive”, explica.

Os núcleos de educação surgem a partir das necessidades e engajamento das próprias comunidades. Em parceria com a Uneafro, forma-se um grande mutirão educacional: os espaços são cedidos, as aulas são gratuitas e os professores são voluntários — mais de 300 ao todo, em sua maioria ex-alunos que acabam por se tornarem referências para os novatos. As aulas acontecem em escolas públicas e espaços comunitários, tais como ocupações de movimentos de moradia e cultura, igrejas e associações comunitárias.

“Se eu estou vendo alguém ali na frente que já conseguiu entrar em espaços que até então me pareciam inalcançáveis, passo a pensar que, sim, é possível, eu também posso conseguir. Há um aumento da autoestima e isso é muito poderoso”, diz Douglas. Uma engrenagem que funciona como uma alternativa de acesso aos estudos, garantindo a melhoria de vida em bairros que são profundamente afetados pelo racismo e pela desigualdade social. “O estudo é fundamental para a mudança da vida do aluno e seus familiares. Quanto mais oportunidade educacional, mais eles estão fora de risco de violência e maior a possibilidade de trabalho e renda”, completa.

Como participar do cursinho

Todo começo e meio de ano, a Uneafro divulga em seu site o link de inscrição para o cursinho pré-vestibular. Mas também é possível fazer inscrição presencialmente; nesse caso, cada núcleo é responsável pela divulgação dentro da sua localidade, como anúncio em rádios comunitárias ou apresentações em escolas públicas, por exemplo.

O cursinho tem duração de um ano e não conta com processo seletivo, para que a participação seja o mais democrática possível. Douglas ressalta que, embora o cursinho seja aberto a qualquer pessoa, o perfil de quem se inscreve é exatamente o que a Uneafro procura: jovens negros, periféricos e de classe trabalhadora.

Para manter as atividades, a Uneafro conta, além do trabalho de voluntários, com doações de pessoas físicas, recursos vindos de participação em editais e apoio de fundações.

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