Fonte: Radar
PORTO SEGURO – As denúncias feitas pelo tenente PM Ícaro Ceita do Nascimento, homossexual que se diz vítima de perseguições dentro da corporação, e repercutidas pelo RADAR64, deram origem a uma série de manifestações de repúdio de associações de policiais e grupos GLBTs.
Acusado de deserção e de atirar em um colega de farda por disputar com ele o amor de um soldado, Ceita foi preso duas vezes e teve contra si um polêmico pedido de exoneração da PM em parecer do 1º promotor de justiça militar, Luiz Augusto Santana, enviado ao ex-comandante geral da corporação. No documento, o promotor considera que a carreira militar e a homossexualidade são ‘antagônicas’.
Em entrevista, Ícaro fala dos abusos sofridos em sua carreira, depressão, da luta para conseguir realizar seu trabalho com dignidade.
Há quanto tempo você está na Polícia Militar?
Tem 8 anos. Para entrar na corporação, é preciso fazer concurso ou vestibular. Eu fiz vestibular pela Universidade Estadual da Bahia, que seria o equivalente ao bacharelado em Segurança Pública. Em 2004, me formei 1º Tenente.
Como foi assumir sua homossexualidade e quando você começou a sentir retaliações?
Dentro da Academia, eu já sentia preconceito mesmo antes de falar abertamente sobre o assunto. Eram piadinhas vindas de superiores e também de outros cadetes. Mas a coisa ficou pior em 2003, quando o comandante fez uma reunião com os 156 cadetes e, entre outras coisas, afirmou que a Polícia não era lugar para traficante, ladrão nem homossexuais. Quer dizer, colocando no mesmo saco gays e marginais. Em seguida, ele chegou a dizer que a culpa pela presença de gays na turma era dos próprios cadetes, que admitiam aquilo. Falando isso, ele tentou jogar a turma contra mim e respaldou todas as retaliações que sofrí.
Que retaliações foram essas?
Várias. Os oficiais me negavam direitos que eram garantidos à todos, como o de tirar licença para ir pra casa. Agressões verbais e físicas também chegaram a acontecer.
Agressões físicas?
É, quando havia simulação de estado de guerra, eles pegavam pesado comigo.
E quando você finalmente falou abertamente que era gay?
Foi em 2004, durante uma palestra. Estávamos discutindo vários temas, sexualidade inclusive. Eu me levantei e falei, de maneira natural, que era homossexual. Depois disso, a coisa apertou. Apesar de alguns colegas demonstrarem admiração pelo meu ato, os superiores aumentaram as retaliações. Numa ocasião, o diretor da academia me colocou de pé na frente dos colegas e disse que eu era uma vergonha para a PM. Quando eu já era Comandante da 3ª Companhia, em Porto Seguro, mudou o comando do 8º Batalhão, ao que minha companhia era subordinada. Assumiu o Coronel Carlos Maurício, que já chegou dizendo que ali não era lugar para gays. Ele chegou a inventar que eu havia atirado em outro tenente por ciúmes de outro colega de farda. Isso é totalmente inverídico, não existe sequer uma vítima para comprovar a história. Na época, eu namorava há 2 anos uma pessoa de fora da Polícia e morava junto com um colega, que havia estudado comigo na Academia e que era como um irmão para mim. O que o Coronel queria na verdade era que nós dois saíssemos.
Qual foi sua reação à tanta perseguição?
Resolví que devia mostrar trabalho. Me recusei a ficar trancado num escritório do quartel e saí às ruas para tentar resolver as questões de segurança da população mais carente. Só que fiquei tão envolvido com o trabalho, que passou a ser uma válvula de escape, que passei a somatizar os problemas da população. Ficava muito triste ao ver tanta coisa ruim acontecendo que os sintomas da depressão começaram a aparecer. Passei a ficar sem ânimo, dormir demais…
E como saiu dessa?
Não foi fácil. Na época, integrantes da Polícia Militar podiam optar para serem transferidos para o Corpo de Bombeiros de Porto Seguro. Eu resolví solicitar minha transferência e entreguei o requerimento no prazo, só que o documento sequer foi remetido. O Coronel Maurício simplesmete engavetou. Ao invés de enviar o requerimento, ele me transferiu compulsoriamente para Salvador. Chegando lá, as perseguições ficaram piores e a depressão se aprofundou. Sem condições de trabalhar, eu tentei entregar um atestado assinado por um psiquiatra, que recomendou meu afastamento até que minha saúde melhorasse. Só que o Comandante nunca me recebia para que eu entregasse o atestado. Mesmo quando conseguí entregar, eles não emitiram um recebido (comprovação da entrega do documento) e a junta da polícia não reconheceu o atestado. A corporação é maquiavélica. Eles me desacreditaram e tudo o que eu alegava soava como loucura, mesmo sendo a mais pura verdade.
Foi aí que você foi preso?
Foi. Fiquei preso por deserção durante 20 dias, que mais pareceram 20 anos. Cumpri sentença no Batalhão de Choque da PM e foi lá que meu caso foi analisado com mais cuidado e concluiu-se que eu não era desertor. Isso depois de o diretor da junta médica militar do Batalhão ter confirmado a procedência do meu atestado. A liberdade veio depois da concessão de uma liminar.
Você pretende continuar na PM?
Sim. Mas é claro que vou precisar de algum tipo de proteção especial. O Governo do Estado precisa se manifestar sobre meu caso, já que ele quem controla a Polícia Militar. Há um ano, eu tento entregar um relatório da minha situação e não consigo. Já procurei a Governadoria, a Secretaria de Direitos Humanos, e nada.
Quando estava na Academia, você chegou a sugerir a criação de um núcleo para debater a sexualidade. No que deu isso?
Hoje na Polícia, já existem os mais variados núcleos: mulheres, católicos, evangélicos. Pensei em criar um sobre sexualidade, até mesmo para preparar o policial para lidar com situações nas quais a questão esteja envolvida. Em 2004 alguns colegas demonstraram interesse na proposta, mas depois que nos formamos, cada um foi para uma cidade diferente e a idéia perdeu força. Neste ano, tentei apresentar o projeto para o Comandante Geral, que sequer me recebeu. Seu assessor disse que a criação do núcleo seria inconstitucional. Eu questionei, expus a existência de outros grupos, mas a discussão morreu aí.
Quando questionado sobre seu caso, o promotor de Justiça Militar da Bahia, Luiz Augusto de Santana, afirmou à imprensa que homossexualidade e a carreira militar antagônicas. O que você teria a dizer?
Diria que ele estude e se informe. A formação da polícia é baseada no exército da Roma Antiga, que aceitava e estimulava a homossexualidade. Portanto, todos deveriam ser no mínimo simpatizantes. Além disso, ele precisa lembrar o quanto meu trabalho foi bem avaliado em Porto Seguro. Enquanto eu estava no comando, o combate ao crime era mais eficiente, o número de apreensão de drogas aumentou. Depois que saí, tudo piorou. Houve até casos de assassinatos de gays e policiais.