Professor vai à casa de estudantes sem acesso à internet para entregar tarefas

O dia está chuvoso. Arthur Cabral, 29 anos, busca no guarda-roupa algo simbólico para usar naquela manhã. Escolhe uma camisa preta com os dizeres “lute como um professor”. Depois, coloca a mochila nas costas e monta na bicicleta. O percurso a seguir é longo. Incomum. Inspirador.

Arthur é professor de ciências na Escola de Referência Deputado Oscar Carneiro, na Vila da Fábrica, em Camaragibe. Toda sexta-feira, carrega na bolsa envelopes amarelos contendo tarefas impressas de várias disciplinas. Cada um deles será entregue, de bicicleta, na casa de vinte estudantes do sexto e sétimo anos do Ensino Fundamental.

A suspensão das aulas presenciais nas escolas por conta da pandemia do novo coronavírus revelou um lado cruel do acesso à educação. Quando as aulas virtuais começaram na rede pública, no início de abril, Arthur percebeu que um grupo de estudantes do Fundamental não participava das aulas. Depois de analisar a situação, entendeu o porquê da ausência.

Para ter acesso às aulas, os meninos e meninas do Fundamental precisam do YouTube ou instalar aplicativos para aulas online ao vivo. O grande problema de parte dos estudantes é a falta de celulares e dificuldade de acesso à internet. Muitos têm rede limitada somente ao uso do WhatsApp. Outros usam senhas dos vizinhos. Há quem precise também dividir o aparelho celular com os irmãos. Depois de conversar com outros professores da escola e descobrir que o problema era comum a todas às disciplinas, Arthur resolveu preparar kits com tarefas e entregar o material de casa em casa. Faz isso sob sol ou chuva.

“Se a educação é um direito universal, ela precisa chegar a todo mundo. Então, é isso que estou fazendo”, comenta o professor, que mora na Cidade Universitária e pedala cerca de 30 minutos para chegar à escola. O percurso para entregar as tarefas é formado por ladeiras e becos. Joelma Santos, 29, mãe de quatro crianças, uma delas aluna de Arthur, recebe o professor em casa. Para chegar ao imóvel, até de bicicleta é difícil. “Temos somente o meu celular para eles estudarem. Então, tenho que dividir o equipamento entre os quatro filhos. Tem hora que fico louca, ajudo uma na tarefa no celular, depois ligo a televisão para o outro ver a aula. Quando saio para trabalhar, eles ficam sem ter como acessar”, explicou Joelma, que é diarista. Nicole Santos, 12, filha mais velha de Joelma, diz: “Agora vai ser mais fácil para mainha.” Na sexta-feira seguinte, Arthur passa na casa de todos novamente para entregar tarefas novas e pegar o material anterior para enviar para correção.

A atitude de Arthur comoveu outros professores e a direção da escola. O professor de Educação Física, Diógenes Sampaio, 34, mora em Águas Compridas, em Olinda, e se ofereceu para ajudar o colega. Eles combinaram de dividir as entregas. Diógenes fará sua parcela do trabalho de moto. Quem acompanha os dois professores é o líder comunitário Jorge Vicente Ferreira, 51. Ele conhece cada recanto do bairro e sabe onde mora cada aluno. Outros colegas de Arthur ajudam na cota para pagar a cópia e os envelopes.

Na opinião do diretor da escola, Antônio Vicente, a ação de Arthur tem a capacidade de mudar a vida dos alunos. “Vamos dar oportunidade aos estudantes, alguns em processo depressivo, e ao mesmo tempo combater a evasão escolar. Trata-se de um olhar diferenciado da escola para o aluno. E ele pensa: a escola não esqueceu de mim. Eu estou vivo.”

A escola tem 450 estudantes e oferta ensinos Fundamental e Médio integral, além de Educação de Jovens e Adultos. Os alunos e alunas vêm de localidades próximas, além de bairros mais distantes como Várzea, no Recife; São Lourenço da Mata; e bairro dos Estados, em Camaragibe.

Para quem consegue participar das aulas virtuais, as tarefas são enviadas pelo WhatsApp. Arthur ensina em seis turmas do sexto e sétimo anos do Fundamental. Cada turma tem, em média, 38 alunos. A média de idade dos estudantes é entre 11 e 13 anos. O lugar mais distante alcançado por Arthur é o bairro de Tabatinga, em Camaragibe. “Somente para subir a ladeira, levo dez minutos”, calcula.

Adrieli Nascimento, 13, não tem celular. A internet disponível é da vizinha, cujo filho cedeu a senha escondido da mãe. Por isso não consegue acompanhar as aulas virtuais. Passou a receber as tarefas em casa das mãos de Arthur. Adrieli ainda não está sequer próxima de competir com um estudante com bom poder aquisitivo. Apesar de ser direito de cada pessoa ter oportunidades iguais em relação à educação, independentemente de qualquer fator social que dificulte essa acessibilidade. Mas a iniciativa de Arthur é um tijolo nessa construção de direitos. E uma das coisas mais bonitas já vistas em meio à tragédia da pandemia.

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