Bruno do Nascimento, de 32 anos, foi o primeiro da família a entrar no ensino superior. Formado por uma escola pública e autodeclarado negro, ele começou a estudar Publicidade e Propaganda em 2014, quando conseguiu uma bolsa integral pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni), na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no centro de São Paulo.
Por Camila da Silva, Da BBC News Brasil
Ler o próprio nome na lista de aprovados trouxe alívio a Nascimento, depois de tantos investimentos e horas de estudos para o vestibular. Para a mãe, Vera Lúcia, de 60 anos, a conquista foi um sopro de esperança. Ter filho formado significa ver a trajetória de dificuldades da família mudar.
Em geral, a escolaridade no Brasil é um fator determinante do nível de renda e até dos limites de salário. Em um país em que a remuneração média de quem tem ensino médio completo é de R$ 1.000, o valor salta para R$ 4.600 para quem concluiu uma faculdade. Estatisticamente, ter pais que frequentaram a faculdade amplia as chances de os filhos atingirem o mesmo patamar.
Mas, antes mesmo de pisar na universidade, Nascimento percebeu que os desafios tinham apenas começado. Morador de Campo dos Alemães, bairro na periferia de São José dos Campos (SP), o jovem precisou mudar para a capital do Estado – a alternativa seria se deslocar 105 km por dia, algo inviável financeira e fisicamente.
Sem emprego, mesmo com a gratuidade no transporte municipal, os gastos com alimentação e aluguel do imóvel que dividia com um amigo ultrapassavam o teto de R$ 400 de seu orçamento pessoal. Mesmo um emprego temporário não foi suficiente para equilibrar as contas.
Em 2015, Bruno trancou o curso e voltou a morar com a mãe em Campo dos Alemães. Hoje, trabalha como designer, além de fazer frilas como analista de dados. O serviço garante sua renda mensal, em torno de um salário mínimo, em média. “A sensação de fracasso me acompanha todos os dias desde que vim embora, não vêm sendo fácil”, diz o jovem, que tem pouca esperança de concluir a universidade tão cedo.
“Você trancar a faculdade por um fator que não é sua culpa é pior. Trabalho, eu lembro que procurei em todo lugar, e não estava dando certo. Parece que não é pra você estar lá”, diz Nascimento.
Criado em 2004, o ProUni concede bolsas integrais ou parciais em universidades privadas para estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas ou que tiveram bolsas em escolas particulares. Em 2018, foram 117 mil beneficiados. O benefício é vinculado à nota obtida pelos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a uma faixa de renda familiar mensal específica.
Dados mais recentes do Ministério de Educação mostram que desde o início do ProUni até o primeiro semestre de 2017, mais de 115 mil bolsistas deixaram a universidade por evasão. Entre os estudantes negros, essa taxa retrata a realidade de 63 mil alunos (pretos e pardos), ou 54%. Já entre os estudantes brancos, essa taxa representa 48 mil alunos, ou 41%. A proporção de evasão é semelhante à divisão das vagas nas duas categorias – em 2018, dos 117 mil bolsistas, 71 mil eram pretos e pardos (61%) e 43 mil, brancos (37%).
“A dificuldade no acompanhamento de estudos e a financeira são alguns [motivos] que podem resultar na evasão, como também a ideia do complexo de impostor, que é o entendimento dessas dificuldades como algo individual e não fruto de uma realidade social”, explica Dyane Brito Reis, professora e pesquisadora de Acesso e Permanência de Jovens das Comunidades Negras no Ensino Superior da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
As inscrições do ProUni deste ano estão abertas até 30 de setembro para estudantes já matriculados.
Barreiras à permanência
Um das principais medidas adotadas para auxiliar estudantes de baixa renda no ensino superior é o programa de bolsas de auxílio permanência. O governo federal destina R$ 400 mensais para financiar os custos de estudantes do programa com bolsa integral do ProUni.
As universidades privadas também têm seus próprios programas.
Veridiana Santana, de 22 anos, moradora do Campo Limpo, na periferia de São Paulo, continua a lutar pelo sonho do diploma. Ela acorda às 4h para chegar às 7h na Fundação Getúlio Vargas (FGV) no centro de São Paulo, onde tem uma bolsa de estudos e cursa Administração Pública. Em geral, ela só volta para casa à meia-noite.
Na sala dela, dos 40 alunos, apenas outros cinco são negros como Veridiana Santana. Nacionalmente, apesar da política de cotas, 34% dos estudantes universitários são negros, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Como o curso é oferecido apenas em período integral, Santana não tem tempo para trabalhar. A mãe, Anisia Rodrigues, de 58 anos, é quem custeia as faculdades da jovem e sua irmã na universidade. Aposentada, ela ganha um salário mínimo por mês e trabalha como diarista para complementar a renda da sua casa. “Minha mãe sempre foi muito realista comigo. Sempre me diz: ‘Estuda, se não você não vai conseguir melhorar de vida'”, conta.
A alimentação se tornou um dos primeiros obstáculos no seu percurso acadêmico. O custo mensal com as refeições é de R$ 400. São R$ 20 diários que incluem almoço, café da manhã e café da tarde no restaurante da universidade – um valor negociado após uma longa discussão entre a FGV e o grupo de bolsistas. Mesmo assim, equivale a 20% do salário mensal da mãe.
“Foram três anos tentando pular essa porta do acesso que está fechada. Mas, agora, eu questiono: será que eu vou sobreviver tanto academicamente e até em questões físicas mesmo, sabe?”
Os auxílios que a FGV oferece a jovens com dificuldades financeiras funcionam como um financiamento estudantil: são bolsas semestrais para custos com alimentação, transporte, moradia e material escolar, cujos valores precisam ser restituídos à instituição após o fim da graduação.
Os gastos anuais de Santana chegariam a R$ 10 mil, o equivalente a toda a renda familiar. Em outras palavras, inviabiliza o recurso porque ela não conseguiria pagar a dívida.
Alcance limitado do programa
O ex-bolsista do ProUni Bruno Nascimento chegou a buscar informações sobre a bolsa-permanência oferecida pelo Governo Federal, mas ela exige um mínimo de seis horas diárias de aula e três anos de duração em um curso presencial. A carga horária média diária de Nascimento era de quatro horas.
Os pré-requisitos praticamente inviabilizam o benefício. Dados do Ministério da Educação mostram que, no ano passado, apenas 523 dos 22.866 cursos inscritos no ProUni atendiam aos critérios exigidos para concessão de bolsa permanência. Dos 702 mil estudantes bolsistas matriculados em 2018, apenas 8 mil recebiam o auxílio permanência.
Um projeto de lei de 2016 tentou mudar os critérios de seleção à bolsa permanência. De autoria do deputado Wadson Ribeiro (PCdoB-MG), a finalidade era incluir os alunos que tivessem trabalho comprovado e até seis horas diárias de aula. Além disso, previa a criação de um Fundo Nacional de Permanência Estudantil para o financiamento das bolsas. O texto chegou a ser analisado pela Comissão de Educação da Câmara, mas foi rejeitado e arquivado.
No Mackenzie, instituição onde Nascimento estudava em Higienópolis, região central de São Paulo, as mensalidades variam entre R$ 912 e R$ 3.291. Os alunos em condições de vulnerabilidade econômica são encaminhados para as chamadas “bolsas-mérito”, uma espécie de trabalho remunerado dentro da universidade por serviços como monitoria e pesquisas científicas.
Mas Nascimento afirma que nunca foi orientado pela universidade a esta alternativa e, pouco tempo depois de perder o emprego, trancou sua matrícula. Dois anos depois, tentou retornar a São Paulo, mas logo deu adeus de novo, pelos mesmos motivos e não conseguiu voltar mais aos estudos. A instituição não esclareceu como acontece a divulgação das bolsas-mérito até a publicação da matéria.
Sociólogo e gerente de Tecnologias Educacionais do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), Wagner Santos reconhece avanços na inclusão e na democratização do acesso à universidade conquistados pelo ProUni e por ações afirmativas nas universidades , mas enfatiza a falta de ações complementares para assistir aos bolsistas. “As políticas, quando associadas à moradia, alimentação e transporte, são muito importantes para a permanência”, diz.
Para Dyane Brito, da UFRB, há muito o que se avançar no país para transformar a universidade em um ambiente que realmente aceite a diversidade. “A gente precisa entender que não temos mais um único público na universidade, nós temos estudantes que têm trajetórias de vida distintas, que a universidade precisa perceber esses indivíduos como sujeitos ativos dentro do espaço universitário”, diz.
Para ela, atualmente os coletivos estudantis são importantes para o processo de formação e coletividade nas universidades.
“Nos coletivos, a gente encontra estudantes que vão se descobrir negros no espaço universitário, entender a perspectiva racial dentro desse espaço. São grupos que vão dividir alimentação, dividir xerox do texto mas que, sobretudo, são grupos que vão ter um suporte político e emocional ao estudante para a sua permanência para o ensino superior”, afirma.
Questionado sobre a possibilidade de revisão de critérios da bolsa-permanência do ProUni e sobre possíveis projetos de assistência aos alunos prounistas, o Ministério da Educação afirma que concede o benefício aos estudantes que atendem aos critérios exigidos e não indicou a possibilidade de alterar os critérios ou de criar novos projetos de assistência.