Quem é a estilista brasileira que criou 3 looks de “Wakanda” para a Marvel

Foi do reconhecimento do poder das mulheres negras pela estilista Jal Vieira, também negra, que nasceu uma coleção de moda cujo símbolo central é a “erva coração”. A planta faz parte da história de “Pantera Negra”, filme da Marvel Studios, e dá força ao guerreiro T’Challa. Mas enquanto é o rei de Wakanda que ganha poderes quando em contato com ela, são as mulheres do reino as responsáveis por semeá-la. “E, assim, cultivam o povo”, filosofa Jal.

Pode-se dizer que Jal Vieira também teve a carreira nutrida por uma mulher: a mãe, Anaohan Verdaneiro. Foi ela quem trabalhou vendendo quitutes na rua e como faxineira para conseguir comprar um tear, objeto necessário para a filha concluísse a faculdade de Design de Moda, em 2013, por exemplo.

Criada na Brasilândia, bairro periférico da zona norte da cidade de São Paulo (SP), as histórias se cruzam na parceria da estilista com a Disney Brasil. Três looks desenhados por ela e inspirados nas personagens do reino fictício celebram o lançamento de uma campanha da Marvel Brasil em prol do respeito à diversidade. A coleção “Realeza” será lançada nesta quarta-feira (20) e vendida exclusivamente na Farfetch, plataforma virtual de moda de luxo.

Para Universa, Jal conta que, como mulher negra não retinta, periférica e lésbica, pensou que o grande desafio da menina que gostava de ilustrar e assistir a desfiles de moda na televisão seria entrar na faculdade. Entretanto, após ser aprovada no vestibular de uma faculdade particular da capital paulista, entendeu ele se manifestaria na desigualdade social que a acompanharia cotidianamente.

Coleção “Realeza” tem três looks inspirados nas guerreiras de Wakanda: estilista escolheu estamparia silkada em plastisol vermelho e preto
Imagem: Rony Hernandes/Divulgação

A seguir, Jal Vieira fala a Universa sobre a trajetória pessoal, a carreira na moda e a parceria com uma gigante do entretenimento.

UNIVERSA: Como foi o início da sua carreira na moda?

JAL VIEIRA: O interesse foi acidental. A minha grande paixão era ilustrar. Nunca tinha feito curso, mas minha família sempre teve um pé muito forte nas artes. Minha mãe, por exemplo, é cantora há muitos anos. Esse lado foi desenvolvido em mim, apesar do acesso restrito ao ensino, extremamente escasso, por conta de questões econômicas e sociais.

Entrei na moda com contragosto, tinha um baita preconceito com a área. Não me enxergava na moda, nem pessoas ou trajetórias parecidas com a minha, somente corpos brancos, esguios, elitizados — ou, pelo menos, assim retratados. O incentivo veio da minha mãe.

Você falou dessa experiência no primeiro dia de faculdade. Como foi sua rotina no curso?

Antes de entrar na faculdade, meu primeiro embate era “como vou estudar moda sendo moradora da periferia, preta e lésbica, ou seja, carregando recortes que impossibilitam o acesso à cultura e à educação?”

Na época, já tinha o Prouni. Fiz boa pontuação no Enem e passei em segundo lugar na Belas Artes. No primeiro semestre, pensei em desistir. Ficava chocada com as conversas das alunas, já que as classes são majoritariamente compostas por mulheres. Aliás, isso é outra questão, não é? As turmas são de mulheres, mas os grandes nomes da moda, que ganham os holofotes, são sempre figuras masculinas, cisgêneras, brancas e ricas…

Via as meninas de 18 anos com dois carros importados, fazendo viagem de final de semana para a ‘gringa’ e me perguntava: ‘O que eu tô fazendo aqui?’. Só me formei graças ao apoio afetivo da minha mãe

No TCC, desenvolvi um tecido de borracha com um tear que ela fez das tripas um coração para conseguir comprar. Deixava-o ao lado da minha cama, porque era o símbolo da resolução de um grande projeto, a faculdade. Fui a primeira pessoa da minha família a se formar na universidade, o que é uma vitória, mas também problemático.

De que forma você entrou no mercado de trabalho?

Estagiava em uma marca que fazia para da São Paulo Fashion Week (SPFW) desde 2010, a marca tinha um nome ‘Pajubá’, que é a linguagem LGBTQIA+, e fiquei lá por seis anos. O que aprendi, desde acabamento até respeito ao próximo, foi com as modelistas e costureiras da marca, porque sempre ficava com elas. Uma delas, aliás, a Ana Paula Cordeiro, costura até hoje metade das minhas coleções.

Modelo veste um dos looks da coleção; a estilista Jal Vieira também tem marca autoral
Imagem: Rony Hernandes/Divulgação

Você é mulher, negra, lésbica. Sua trajetória na moda foi marcada por preconceitos, como o racismo e o machismo?

No início da trajetória, não enxergava as situações de racismo, principalmente pelo fato de ser uma mulher negra não retinta. A gordofobia, sim. Não sou uma pessoa considerada gorda, mas não me encaixo nos padrões de magreza que são ditados. Na moda, me olhavam estranho.

Ainda assim, tinha dificuldade para entender, principalmente o preconceito racial, porque eu também passei por um processo de embranquecimento. Afinal, todas as pessoas com que eu lidava eram brancas.

O ato de me entender preta, na verdade, é algo bem recente. Mas vivi o racismo sendo seguida em loja, sendo tratada diferente no trabalho. Enquanto a pessoa branca ficava para recepcionar artista, eu era colocada para carregar sacola. Não entendia por que passava por isso, mesmo há tantos anos na área. Também havia um silenciamento pela questão de gênero. Achava que era tímida, mas era silenciada. Quando entendi a real potência da minha voz, virei a chave.

De onde veio a ideia de criar a marca autoral?

Foi inspirada em uma coleção que fiz para o concurso da Casa dos Criadores, há 11 anos, em que fiquei em segundo lugar. E, nela, desde sempre crio a partir de minha cultura, a cultura preta, a ancestralidade… Chamo de “afrobrasilidade”.

Trabalho com texturizações e isso vem de um resgate familiar. Minha mãe fazia as roupas dela com saco de estopa lá no sertão da Bahia, tinha essa realidade que a gente acha que é distante, mas está ao nosso lado. Valorizo o fazer manual. É o meu parque de diversões para criar.

Você vê a moda como um ambiente diverso? Ainda há mais espaços para se ocupar?

A moda não estava preparada para a diversidade. O movimento atual foi no susto, de “deixa eu colocar uma pessoa preta aqui, porque se não tiver, não vou ser bem aceito”. Ao mesmo tempo, as nossas trajetórias como estilistas negros já existiam antes, não passaram a existir agora. Um jornalista branco me falou em uma entrevista, uma vez: “Você, que está começando agora…”. E eu falei: “Não, você está olhando para mim agora, é diferente”.

A invisibilidade tem sido rompida por mérito nosso, de metermos o pé na porta. E a força vem da nossa coletividade.

O que traz essa coleção em parceria com a Marvel?

Uma das coisas mais importantes nessa coleção foi o respeito. Fui apoiada pela Marvel em tudo que trazia de ideia. E quando a gente rompe com a estrutura racista, misógina, transfóbica e de todos os recortes, nasce a possibilidade da perpetuação e respeito das nossas histórias.

Peças são inspiradas em mulheres negras “da realidade” e nas personagens do filme Pantera Negra, da Marvel Studios
Imagem: Rony Hernandes/Divulgação

Há alguma inspiração além das guerreiras de Wakanda para as roupas?

“Tentei transpor quem são as mulheres da minha realidade que têm coragem, transmitem ideia coletividade, de humanidade. A escritora Ryane Leão, MC Dal Farra, a poeta Luz Ribeiro. Admiro também as modelos que estão na campanha, Gerlem Moura, Luara Costa e Maya Ferri.

Nos looks, tentei materializar as nervuras como uma maneira de simbolizar as camadas de quem veio antes da gente para chegarmos até aqui. Também trabalho apenas com material sintético, nada de origem animal.

Dessa vez, foi um tecido para estofado, mas já usei cadarço de tênis, borracha…Para essa coleção, que comecei a colocar a mão na massa em janeiro, mas já tinha um ‘namoro’ com a marca há um ano, foquei na estamparia “Erva Coração”. Além de dar o poder ao Pantera, ela é cultivada pelas figuras femininas. Simboliza como a mulher preta é extremamente importante tanto no filme, quanto na nossa realidade.

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