Quem pariu Mateus que o embale?

Li Travassos, de Florianópolis

 

Neste sábado, 11 de julho de 2009, ocorreu um terrível acidente na Zona Norte do Rio de Janeiro. Um menina, de apenas cinco anos de idade, caiu através da tela de proteção rasgada de uma das janelas do apartamento, e morreu. Era noite, e havia uma festa junina no prédio, onde toda a família se divertia. A menina, cansada, pediu para dormir, a mãe a levou para o apartamento e deixou-a supostamente dormindo, e saiu por alguns minutos para buscar a outra filha na festa. Minutos estes que foram suficientes para que a filha de cinco anos se estabacasse lá embaixo. A tela de proteção estava rasgada há algum tempo, devido a um ferro quente que ali fora encostado.

 

Agora, como esta notícia foi divulgada em vários noticiários? Dizendo que os pais estavam numa festa, e deixaram a menina sozinha em casa. O que justifica esta maldita intenção sensacionalista sobre uma fatalidade tão terrível? Estes pais foram nivelados a outros que deixam os filhos cozinhando dentro do carro no verão, e vão bater pernas no shopping, ou vão para o bar e deixam a criança no carro. Enfim, com pais que realmente estão se lixando para os filhos. Não era o caso. A festa era absolutamente familiar. A mãe havia acabado de colocar a filha na cama, e saiu por pouquíssimo tempo.

 

Outra coisa : havia um banquinho do lado da janela, e os jornais dizem: não deixe móveis perto das janelas! Ora! Que não se deixe uma cama ou um sofá, tudo bem. Mas eu já vi crianças que mal sabem andar arrastando banquinhos. Imagine então uma menina de cinco anos. Então, deduz-se que não deve haver banquinhos em apartamentos com crianças, certo? E nem cadeiras. Ou mesinhas pequenas. Ou pufes. Porque as crianças podem arrastá-los até debaixo da janela. As cadeiras, banquinhos, etc., deveriam vir com um aviso: mantenha fora do alcance das crianças …

 

Tá certo, os pais deveriam ter trocado a tela de proteção assim que ela estragou. Agora, uma pergunta que ninguém fez ( ou se fez, eu não ouvi): que raio de tela de proteção é esta que se rompe com um ferro quente e pode ser cortada facilmente com uma tesoura? Pois a menina parece ter aberto um pouco mais a tela, com uma tesourinha escolar, daquelas com pontas redondas, que não costumam cortar nada direito. Além disso, no caso Isabella Nardoni, o pai ou a madrasta são acusados de terem cortado a tela de proteção de seu apartamento em poucos minutos. Então, quem tem crianças em casa, além de não poder ter cadeiras, banquinhos, etc., também não deveria ter tesouras, facas, e tais? Quando a professora pedir para você comprar uma tesourinha de pontas redondas para seu filho, diga que não! ” Não compro! Senão ele vai cortar a tela de proteção, vai se enfiar por ela, vai cair e vai morrer!”

 

Desculpem, eu pareço estar brincando com uma história tão terrível, mas isto é minha maneira de lidar com isso sem ter um ataque. Imagino que estas telas não sejam baratas. Mas, pelo jeito, são uma bela m… E quem é responsável por isso? Os pais das crianças?

 

É verdade que não devemos deixar crianças pequenas sozinhas, mesmo que por pouco tempo. Esta mãe errou? Sim, ela errou. Ela e o marido foram presos por abandono de incapaz, libertados apenas para ir ao enterro da filha, e correm o risco de pegar até 12 anos de prisão. Eles perderam a filha, podem perder a guarda da outra e podem vir a passar um bom tempo na cadeia. Já não é castigo suficiente? É necessário tratá-los na mídia como se fossem bandidos?

 

Em um dos jornais que assisti, foi feita a afirmação de que crianças menores de doze anos não podem ser deixadas sozinhas, mesmo por pouco tempo. Talvez. Mas considerando que vivemos em um país onde :

 

– não há planejamento familiar eficiente;

– não há ( ou há muito pouco ) sistema de apoio a mães adolescentes;

– conseguir uma vaga em uma creche é tão fácil quanto ganhar na loteria;

– a lei manda que as creches e escolas de ensino fundamental funcionem em período integral, mas isto absolutamente não acontece;

– as escolas (e mesmo algumas creches ) têm férias longas, duas vezes por ano;

– muitas (e a cada dia mais ) famílias são uniparentais, ou seja, apenas um dos pais é presente, e é o único responsável pela criação, sustento e educação dos filhos ( quase sempre a mãe );

– a maioria das famílias não tem a menor possibilidade financeira de contratar uma babá;

 

Aí, pergunto eu, como podemos querer que não se deixe crianças menores de doze anos sozinhas nem por um minuto? E que se pretenda responsabilizar exclusivamente os pais – de preferência as mães – por tudo que possa acontecer com uma criança, caso ela seja deixada sozinha com menos de doze anos de idade?

 

O pensador Michael Foucault considerava a preocupação que o Estado aparentemente tem com as crianças mero investimento em ” capital humano “. Ou seja, as crianças devem ser alimentadas, medicalizadas e protegidas, não por amor humanitário, nem pela defesa dos direitos humanos, mas sim, em função de que são os adultos de amanhã, que irão trabalhar e mover o país, que irão para a guerra defender o país se preciso for, que irão pagar impostos, que irão pagar a previdência que o Estado repassa para os aposentados, enfim, que irão possibilitar que o país não afunde, e de preferência que tenha destaque mundial.

 

Fonte: Revista Pobres Nojentas –

Mas as crianças não são tratadas, absolutamente, como responsabilidade do Estado. São tratadas como responsabilidade dos pais. Basicamente das mães. As mães deveriam cuidar dos filhos nas férias. As mães não deveriam trabalhar fora, para poderem cuidar de seus filhos. As mães são responsáveis se os filhos erram, pois elas devem dar educação aos filhos. As mães jamais deveriam deixar os filhos mais velhos cuidando dos mais novos. As mães devem vacinar os filhos. As grávidas devem fazer exames, devem se alimentar direito, devem medicar-se se for necessário … Tenham elas condições de fazer tudo isso ou não.

 

Diariamente, centenas de meninas engravidam neste país, muitas vezes por decisão própria, como forma de conseguir casar e sair de casa, para poder se livrar da mãe repressora, ou do pai alcoólatra, ou do padrasto que abusa sexualmente dela. E vê seus sonhos despedaçados na primeira esquina, pois ou o namorado some, ou casa com ela e passa a espancá-la, ou gasta o dinheiro todo em bebida, ou a obriga a fazer sexo, tal qual o padrasto … Ninguém é capaz de dizer a estas meninas que ter filho não é solução, e que ter filhos precocemente é um grande problema.

 

Já existem países responsabilizando as mães pela obesidade dos filhos. E quem produz alimentos que são puro lixo alimentar engordativo, e quem coloca propaganda sobre eles na TV, e quem vende este lixo? Quem é responsável pela segurança alimentar dos seres humanos, as mães?

 

Vivemos em um país, como, aliás, quase todos, onde criar filhos é uma tarefa quase impossível. As crianças sobrevivem mais por sorte que por outro motivo. Nesta mesma semana em que a menininha se atochou pela janela, duas outras foram “achadas” por balas perdidas e uma delas também morreu. E todo problema aumenta quando se trata de uma família de baixa renda – ou renda alguma.

 

Que se realizem mais campanhas para que os pais cuidem da segurança de seus filhos, eu acho ótimo. Agora, é preciso também que se produzam telas de proteção decentes e baratas; que quem não possa pagar por elas tenha direito de recebê-las instaladas gratuitamente; que se aumente o número de creches; que todas as escolas de ensino fundamental funcionem em período integral e ininterruptamente durante o ano, com atividades recreativas gratuitas nos períodos atualmente de férias ( para que os pais até possam tirar férias junto com os filhos se puderem); que se invista em planejamento familiar; que se encontrem formas alternativas de adolescentes saírem de casa que não seja através do casamento … Enfim, que o Estado se responsabilize minimamente pelas crianças de seu país. Que ” ser mãe é para descer do paraíso ” nós já sabemos. Mas ser mãe tem que deixar de ser optar por viver num inferno de preocupações e impotência nas famílias de baixa renda.

Matéria original: Quem pariu Mateus que o embale

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