‘Quero mostrar que é possível’, diz travesti cotada a reitora no Ceará

“Para mim é uma felicidade ser a primeira nas coisas mas também uma tristeza. Quantos não estão desistindo da escola por serem hostilizados?”, diz professora travesti cotada para reitoria.

Luma Andrade já se acostumou a ver suas conquistas repercutirem nacionalmente: tornou-se a primeira travesti doutora do Brasil, a primeira travesti professora de uma universidade federal e agora pode se tornar a primeira a chegar à reitoria de uma universidade.

Uma campanha pelo seu nome – batizada de “Luma Lá” – está sendo feita por um grupo de alunos na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), na cidade de Redenção, no Ceará.

Cautelosa, Luma lembra que a escolha do novo reitor cabe ao Ministro da Educação e diz ser tão qualificada quanto os outros docentes da instituição.

Mas o simples fato de ter sido escolhida por um grupo, além de uma honra, afirma, é uma vitória pelo exemplo que estabelece para transgêneros como ela: o de que “é possível”.

“A história da minha vida quer dizer isso: ‘É possível’. É possível ser travesti e ser professora, é possível ser travesti e ser doutora, é possível ser travesti e ser gestora e agora é possível até ser reitora, um espaço em que jamais se pensou”, disse, em entrevista por telefone à BBC Brasil.

Luma veio ao mundo como João, 37 anos atrás, e conseguiu trilhar um caminho muito diferente ao encontrado por muitos transgêneros como ela, frequentemente fadados à marginalização e à prostituição.

Já adulta, ela colocou próteses nos seios e realizou no ano passado um procedimento de feminilização facial, mas nunca fez cirurgia de mudança do sexo.

A professora prefere se definir como travesti a usar termos como “transgênero” por causa do histórico de preconceito e violência sofrido por travestis.

“Prefiro por uma questão política, de quebra. Eu poderia usar um termo mais leve, mas não é por aí. A ideia é ‘positivar’. As pessoas têm orgulho de ser travesti. Por uma questão política, me afirmo como travesti.”

Os espaços que conseguiu conquistar costumam ser negados aos transgêneros, diz. A cada avanço que ela dá, derruba um tijolo desse muro.

“Da mesma maneira que é importante ter a primeira presidenta do Brasil, também é simbólico ter uma primeira travesti a assumir esses espaços. É uma forma de empoderamento de sujeitos que são historicamente marginalizados.”

O burburinho em torno do nome de Luma começou no fim do ano, quando a reitora anterior da Unilab, Nilma Lino Gomes, foi apontada pela presidente Dilma Rousseff como a nova ministra da Igualdade Racial, e o cargo ficou vago.

Campanha

Por ser uma instituição jovem, a Unilab ainda tem seus reitores apontados por indicação MEC, e não por eleição, algo que só ocorrerá depois que completar cinco anos, no segundo semestre.

Assim, a escolha cabe ao novo titular da pasta, o também cearense Cid Gomes, ex-governador do Estado.

A vaga na reitoria fez um grupo de estudantes rapidamente se mobilizar em prol da professora, formando o coletivo independente Luma Lá Unilab.

O grupo já enviou uma carta a deputados, senadores e a Cid Gomes apelando para que Luma – doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará e professora de educação e direitos humanos – seja escolhida reitora.

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Estudantes dizem que escolher Luma como reitora pode reafirmar caráter vanguardista da Unilab

A carta argumenta que a professora tem “capacidade acadêmica e currículo incontestáveis”, ressalta sua atuação na defesa dos direitos humanos e de grupos LGBT e diz que sua escolha representaria um avanço na promoção da igualdade e no empoderamento de travestis, além de reafirmar o caráter vanguardista da Unilab.

A universidade foi a primeira no país a ter uma mulher negra, Nilma Gomes, como reitora. A instituição foi criada em 2010 com o objetivo de promover a integração entre o Brasil e países lusófonos, especialmente da África, de onde reúne vários estudantes.

O MEC afirma, no entanto, que não há previsão para que o novo reitor seja anunciado.

Mas a simples possibilidade no ar já fez com que o telefone de Luma não parasse de tocar. Desde a semana passada, deu pelo menos dez entrevistas a repórteres do país todo sobre a expectativa de conquistar mais um título de “a primeira”.

“Para mim, é uma felicidade ser a primeira nas coisas, mas também uma tristeza. Se eu sou a primeira, isso quer dizer que quantas pessoas não estão conseguindo chegar a esses espaços por causa de preconceito? Quantos não estão desistindo da escola por serem hostilizados?”

‘Quem mandou ser assim?’

O preconceito acompanhou Luma desde a infância. Crescer no corpo de um menino que se sentia menina tornou a escola um desafio diário.

“Eu sempre brincava com as meninas, era bem feminina, e os rapazes batiam em mim, reagiam com violência”, conta.

“Uma vez, eles me espancaram e, quando fui contar para a professora, a resposta dela foi: ‘Bem feito, quem manda você ser assim?’ Eu era criança e não entendi o que ela estava dizendo. Só mais tarde entendi o significado.”

Luma viu a saída na educação. Sua família era pobre, todos analfabetos. Seus pais eram lavradores em Morada Nova, no interior do Ceará.

O pai achava que escola era coisa de quem não tinha o que fazer. A mãe, não. Quis que ela tivesse oportunidades que não tivera e incentivou o estudo.

“Superei as dificuldades na escola pelo estudo. Eu sempre era a melhor aluna da turma e com isso desenvolvi uma certa parceria com alguns colegas. Eu ajudava eles nas matérias e eles me protegiam da violência dos outros.”

Em cada etapa, via o muro de preconceitos se reerguer: no ensino médio, na universidade, ao passar nos concursos para ser professora da rede municipal e depois da rede estadual do Ceará.

Lembra que, já como professora, chegou a ter seu trabalho em sala de aula vigiado e a ser denunciada à Secretaria de Educação depois de colocar prótese nos seios, sob a alegação de que estava exibindo-os para alunos.

“Era o preconceito, mais uma vez. Diariamente, a gente se depara com pessoas que não aceitam a nossa forma de ser e buscam estratégias para nos depreciar”, lamenta.

“Mas com a convivência, muitas vezes, elas percebem que a ideia que têm de travestis, de que são pessoas marginalizadas, é um estereótipo.”

Apesar de contar com o apoio de muitos alunos, e mesmo sendo a Unilab uma instituição liberal, Luma diz que a campanha para que chegue à reitoria é polêmica e que parte da comunidade acadêmica rejeita a ideia.

“Claro, porque se trata da possibilidade de ter uma travesti na reitoria. Isso incomoda muita gente. Como em qualquer outro lugar, aqui há pessoas progressistas e pessoas conservadoras.”

Ela só deseja que o fato de ser travesti não influencie a decisão – nem pelo sim, nem pelo não. “Não é pelo fato de ser travesti que tenho que ter acesso a um espaço, mas também não é por isso que devo ser penalizada e não ocupá-lo. Tudo tem que ser conforme o mérito e a qualificação.”

Para Luma, a sociedade brasileira vive um momento de forte divisão entre grupos mais conservadores e progressistas.

“Espero que, no futuro, esse pensamento progressista possa avançar e conquistar espaços para a diferença”, diz.

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