Questões sobre a denúncia de Gurgel contra Feliciano – por Enio Squeff

Ao processar Marco Feliciano não por racismo, mas por atentar contra os direitos dos homossexuais, o procurador Roberto Gurgel – espertamente, digamos – leva a questão para a crença religiosa e não para o crime “inafiançável”.

A denúncia do procurador Roberto Gurgel contra o deputado Marco Feliciano, por ser discriminatório em relação à homossexualidade, tem aspectos interessantes. Ao processar o parlamentar não por racismo, mas por atentar contra os direitos dos homossexuais, o procurador – espertamente, digamos – leva a questão para a crença religiosa e não para o crime “inafiançável”do racismo. Questões de sexo, salvo outra interpretação, dizem também do foro íntimo das pessoas; lembra-se que ainda hoje muitos assassinatos de gays são tratados como “crimes passionais”, não importando se o ato seja cometido com requintes de crueldade. No Brasil existe uma homofobia incompatível com a humanidade. Já o racismo tem uma conotação historicamente genocida. Juridicamente é mais difícil condenar alguém por não aceitar a homossexualidade, do que por considerara amaldiçoada mais da metade da população brasileira.

Esperto, esse procurador. Sem trocadilhos, procura se isentar de incomodar muito alguns evangélicos e ainda se dá bem com parte da opinião pública, que não aceita de modo algum um tratamento discriminatório contra as opções sexuais de quem quer que seja. Só que o problema não parece simples e não é. Que o digam os evangélicos de várias denominações que avalizaram as posições não apenas homofóbicas do pastor deputado – mas principalmente as racistas. Ou será que os negros e mulatos que sinceramente professam a fé evangélica, julgam-se amaldiçoados por Deus, pelo “crime”de terem nascido com a pele mais escura do os que se dizem brancos?

O filósofo Jean Paul Sartre no prefácio de uma obra de Jean Genet, dramaturgo francês declaradamente homossexual, não hesitava em chamá-lo literalmente de “santo”. Sartre filósofo existencialista libertário, via como imensamente difícil conciliar a inteligência com o racismo. Pensava, com razão, que a discriminação racial seria uma espécie de sintoma comum aos imbecis. Evidentemente, nunca foi perdoado nem pelos nazistas, muito menos pelos fascistas. Todos sempre o tiveram na conta de altamente pernicioso para as causas que defendiam. Quanto ao título de “santo” dirigido a um intelectual explicitamente homossexual, Sartre o explicava por sua arte voltada para os desvalidos, e mais que tudo, por sua obra profundamente humana – em que nada lhe era estranho, justamente por ser humano.

A questão, contudo, dá o que pensar, principalmente para os evangélicos. Que muitos deles se julguem discriminados, não parece fruto de qualquer paranóia inventada algures. Na Argentina do Papa Francisco, onde se cometeram crimes inomináveis durante a ditadura militar, o Estado ainda hoje guarda laços claramente confessionais com a Igreja Católica. O general Jorge Rafael Videla, encardido em seus crimes contra a humanidade comunga todos os dias em sua cela, onde foi metido justamente por suas culpas. No Brasil o Estado laico não é uma conquista recente, mas parece contar com a inconformidade de muitos religiosos – evangélicos ou católicos. Eles insistem em que suas crenças têm de alcançar as leis; daí a sua inconformidade com algumas questões como o aborto, ea ligação legal entre os homossexuais. Não há nada explícito, entretanto, em relação ao racismo: tem-se como irrefutável que a discriminação racial não pode ser tolerada pela Constituição. O “apartheid”de triste memória pertence à esfera da criminalidade genocida – não menos que isso.

Ora, a frente parlamentar evangélica tem todo o direito de existir. Digamos que seja também em nome da auto-sobrevivência, do direito à religião que as pessoas professam as suas crenças em certas ações comuns. Ainda que vivamos num estado laico, cabe aos religiosos defenderem seus pontos de vista seja onde for. E contra-argumentarem com sua crença, na defesa de suas convicções estritamente religiosas. Difícil dizer do pastor Silas Malafaia que ele não tenha o direito de considerar a homossexualidade uma doença; e que portanto, não a queira inscrita nas leis que não aceitem a sua premissa. O ex-papa renunciante Josep Ratzinger achava que os muçulmanos foram historicamente mais agressivos que os cristãos. Não incluía nas suas contas os fatos históricos hoje mais que amplamente conhecidos- logo ele, tido como um intelectual de respeito – que quem invadiu a chamada “Terra Santa”foram os cristãos enquanto cruzados; e que o colonialismo ‘é cristão, enquanto império; e não os crentes da religião criada pelo profeta Maomé. Por isso, aliás, foi devidamente achincalhado, inclusive por cristãos. Mas ninguém lhe negou o direito de defender seus pontos de vista – ainda que anti-históricos e claramente islamofóbicos. 

Em relação aos pastores Silas Malafaia e seu colega hoje deputado Marco Feliciano, há quem os desconsidere por suas crenças. Mas há quem os reprove não pelo que defendem no âmbito de suas igrejas, e sim pelo que extrapolam dela. A solidariedade dos evangélicos em torno do pastor Marco Feliciano parece pecar não pelo que suas crenças lhes dizem e sugerem, mas pelo que professam contra seus próprios princípio. Ou será que a solidariedade dos evangélicos ao pastor deputado se estende à idéia de que os negros são realmente amaldiçoados? Se for, está aí o maior repto que se poderia imaginar contra os próprios evangélicos que, até quando se sabe, nunca incluíram em suas convicções esse tipo de ignomínia, ou -para seguir o raciocínio de Sartre, – essa imensa estupidez de considerar os negros uma “raça amaldiçoada”. A se considerarem tais idéias, não há razão alguma para desconsiderar tudo de pior que isso possa acarretar – inclusive uma impossível e absurda guerra religiosa. Parece haver um equívoco grave dos evangélicos do parlamento em se solidarizarem com o deputado pastor. Desde que não explicitem em que é mesmo que se solidarizam com o dito religioso – salvaguardada a questão religiosa da não aceitação do casamento entre homossexuais – resta a questão do racismo. E torna inexplicável a existência de negros evangélicos, inclusive na condição de pastores, ou seja, de líderes de comunidades religiosas que professam a denominação evangélica, mesmo sendo da tal “raça amaldiçoada por Deus”. 

Ou seria uma questão ociosa essa?

Para o mais que esperto procurador da República, o assunto lhe parece realmente irrelevante. Mas este senhor, não custa repetir, é esperto. Ao denunciar o deputado Marco Feliciano como homofóbico – um crime, ainda bem que contemplado pela legislação brasileira – ele o isenta do pior dos crimes de opinião, que é o de pregar o racismo. Homem realmente ladino o procurador Roberto Gurgel. 

Quanto aos evangélicos, sabe-se que não é de seu feitio, mas parece terem acendido vela para santo errado. Ou eles concordam com que negros tenham sido realmente amaldiçoados por Deus?

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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Fonte: Carta Maior

 

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