Racismo à brasileira

Causou frenesi o elogio enviesado do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ao ex-presidente Joaquim Barbosa por ocasião da aposição de seu retrato na Galeria de Presidentes do STF.

Por WASHINGTON ARAÚJO, do Brasil 247

Pelo que conheço do ministro, ele está muito longe de ser pintado como racista, como alguém que se considera superiormente racial a outrem. A seu favor, toda a sua história, as muitas causas que tem defendido, os livros que escreveu, suas muitas falas em conferências, debates e mesas redonda.

Ter se referido a Joaquim Barbosa como “negro de primeira linha” foi uma armadilha mental e, como armadilha, foi rapidamente por ele mesmo desativada, pois não precisaram que horas decorressem para que o ministro Barroso se retratasse de forma clara, didática, pública e insofismável.

O próprio reconhecimento de que seria vítima de racismo incubado, algo inconsciente e que continuava oculto em algum desvão da mente, é, por si só, um poderoso atestado de sua humanidade, e nessa condição, como todos nós, sujeito a falhas, falas impróprias, “pensamentos impensados”.

E como ensina a sabedoria mística oriental “em um erro pode ter mil acertos”, este do ministro trouxe consigo o acerto de nos fazer refletir sobre se somos ou não racistas, se dissimulamos bem nosso racismo ou se realmente estamos inteiramente vacinados contra os males que o vírus do racismo causa em nosso corpo ético, mental, espiritual.

O racismo à brasileira se desnuda muito claramente à maneira como se mostrou na fala do ministro: é um racismo enrustido, aparentemente adormecido e que do nada, qual tigre, pode saltar do coração e da mente para a boca. E a boca fala muito daquilo que sente o coração, daquilo que a mente pensa.

O racismo à brasileira é o pior de todos porque é enfermidade que nos acompanha desde a mais remota infância, a par com o sarampo e a catapora, a par mesmo com as dores da primeira dentição. Está tão arraigado em nossa sociedade que muitas vezes nem percebemos quando estamos sendo racistas. Mas, absolutamente, isto não nos isenta de culpa. E a punição é esta: sermos expostos em nossa hipocrisia tanto moral quanto social quando dizemos aos quatro ventos que não somos racistas.

O racismo à brasileira é vil e torpe. Vil porque quer sempre passar batido, faz de tudo para não ser notado e quando se apresenta, procura ser mascarado por intenções outras. Torpe porque é cruel com sua vítima, isto é, surge quando é menos aguardado, algo meio que inesperado. Imagine alguém, como o ministro Barroso, a título de homenagear uma pessoa, um amigo e seu antigo colega de Suprema Corte, desferir palavras a título de elogio e admiração por sua brilhante trajetória acadêmica, e em tal frase carregar consigo todo o mal-estar contido em longos e penosos séculos de sofrimentos que causamos a todos os afrodescendentes?

E foi isto o que aconteceu.

O racismo à brasileira é de um cinismo ultrajante uma vez que sobrevive nas sombras de nosso inconsciente, como aquela criatura – o Voldemort, que se encastelava no turbante do velho professor do mago teen Harry Potter e de lá passava incólume, escondido, oculto. Mas era de lá que Voldemort manipulava os pensamentos do professor, maquinava as maldades sem fim contra Potter.

Será que não temos um Voldemort de estimação em nossas cabeças? Não faz muitos anos tínhamos uma campanha contra a discriminação racial que se resumia em uma frase de feito: “Onde se esconde o seu racismo?” E sempre que lia esta frase em sites da internet, em cartazes do movimento de direitos humanos, logo me vinha à ponta da língua a resposta: “Se esconde em minha cabeça e está sempre a meio palmo de distância de minha boca!”

Em 1986, em importante documento da Casa Universal de Justiça, restou afirmado que “o racismo, um dos males mais funestos e mais persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz” e que sua prática “consuma uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto.”

O senso de justiça de tão veemente declaração invalida por completo uma superioridade racial branca respaldada por testes de inteligência que por mais que venham a ser corrigidos de sua tendenciosidade, ainda assim não têm força para impedir a tendenciosidade dos cientistas que os interpretam. Um documento divulgado há mais de 390 anos e que, no entanto, parece ter sido publicado hoje, tal sua urgência e atualidade.

Não obstante detectar a deturpação de determinados métodos estatísticos, principalmente quando os resultados almejados buscam diminuir os direitos à condição humana de outros seres humanos,

Ressalto duas questões de uma pesquisa realizada pela antropóloga Lilia Schwarcz, autora de “O Espetáculo das Raças”:

(1) Você é preconceituoso? 99% responderam “não” e

(2) Você conhece alguém preconceituoso? 98% responderam “sim”.

Cansado de ouvir uma multidão a dizer que não é racista, penso nesse bonitos versos de Telles Junior: “Meu peito é matriz onde canta Zumbi Sem toque de sinos, com imagens de Vida!”

Em quantos peitos ouviremos a canção de Zumbi dos Palmares, aquele herói enlouquecido de esperança e mentor de uma nação praticante da unidade racial?

Aproveitemos o episódio disparado por Barroso para refletirmos – de forma realmente vigorosa e sincera – sobre como poderemos extirpar o racismo de nossos corações. Por que, sem dúvida alguma, a melhor arma contra o racismo é excluirmos de nossa mais profunda memória emocional esse falso complexo de falaciosa superioridade racial.

Antes de dizermos “não sou racista”, que tal respondermos a este rápido check-list mental:

1. Quantos dos meus amigos são negros, afrodescendentes?
2. Quantos dos amigos de meus filhos e filhas são negros, afrodescendentes?
3. O que sei – e o que posso aprender – com o estudo da vida de humanistas brilhantes como o Mahatma Gandhi, Louis Gregory, Martin Luther King, Enoch Olinga e Nelson Mandela?
4. Qual a minha avaliação de filmes como “A cor purpura”, “Histórias Cruzadas”, “12 anos de escravidão”, “Raízes”, “Selma” e “Estrelas Ocultas”?
5. Em minha cabeça escritores como Machado de Assis e Lima Barreto são afrodescendentes?

Este já é um bom começo para, se nos sairmos bem nas respostas, podermos dizer com certo grau de convencimento que realmente não somos racistas.

No fundo mesmo, o que torna um ser humano superior a outro é quantidade de virtudes morais e espirituais que ele coloca em ação, os seus muitos gestos diários no correr da vida que mostram a força de um caráter nobre e luminoso.

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