Eu me lembro constantemente de histórias do meu território, fofocas contadas entre uma refeição e outra, ali, enquanto sentada no quintal a gente via a vizinhança passar. Frases de julgamento sobre burocracia da casa dos outros e se “o fulano, filho da moça ali, era usuário”. Território esquecido, sem escritura em casas compradas, mas na eterna insegurança de perder nossa casa.
Meu irmão era usuário de drogas; no auge de uma crise, quase foi morto tentando pular a casa de uma vizinha achando que estava sendo perseguido. Nunca cuidamos dele, nunca cuidamos dos nossos amigos. Hoje entendo que nos faltaram recursos e humanidade, sobretudo humanidade.
Nascemos e crescemos em um território complexo, na maior reserva de Mata Atlântica da cidade de São Paulo, pressionada pelo “progresso”. A falta de direitos segue como marca central em territórios periféricos do país. Chamamos Parelheiros de periferia rural, cada vez menos rural e mais encurralada pela especulação e agora pela linha conservadora da extrema direita.
O termo “racismo ambiental” descreve a discriminação institucionalizada que envolve políticas, práticas ou diretrizes ambientais que afetam ou prejudicam de forma desigual indivíduos, grupos ou comunidades afrodescendentes. O racismo serviu como um princípio organizador fundamental para sistemas e processos no centro das crises climáticas e ambientais. Compreender e abordar o clima contemporâneo e a injustiça ambiental em um cenário racialmente discriminatório requer uma abordagem histórica sobre como o racismo moldou a economia, a política, as realidades climáticas e ambientais. E, claro, as estruturas jurídicas.
Em 1989, Spike Lee lançou “Faça a Coisa Certa”, filme que retrata o cotidiano de uma comunidade pobre em uma área suburbana dos Estados Unidos. A convivência entre negros, hispânicos, coreanos e italianos está longe de ser harmoniosa, marcada por tensões constantes e relações que oscilam entre o conflito, trabalho precarizado e a resistência. No filme, na estação de rádio Love Radio, o DJ Love Daddy alerta seus ouvintes sobre a onda de calor que se aproxima: “Fiquem em casa ou acabarão com um capacete de plástico na cabeça.” Nas ruas, idosos sentados na calçada comentam sobre o calor extremo…
Esse calor, retratado por Spike Lee, impulsiona a narrativa do filme e faz parte do que ocorreu durante a chamada Seca de 1988, um período em que ondas de calor extremo combinadas com tempestades de poeira devastaram plantações e causaram inúmeros incêndios florestais, resultando em perdas financeiras significativas para o governo dos Estados Unidos. Na época, os dados mostravam uma média de 10 mil mortes causadas pela onda de calor — que durou 55 dias —, um fenômeno registrado no país apenas em 1934 e 1936.
Lembrar, constantemente, que os povos tradicionais, povos indígenas e quilombolas e comunidades periféricas são os que nos ensinam sobre enfrentamentos, lutas e resistência ao habitar colonial, sendo os maiores defensores da vida humana e do meio ambiente. Lembro a obra “Lugar de Negro”, de Lélia Gonzalez1, lançado em 1982, com Carlos Hasenbalg, pela editora Marco Zero. Lélia escreveu:
“O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos habitacionais, cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos dos dias de hoje. O critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.”
A intersecção entre racismo ambiental, justiça climática e guerra às drogas nos territórios vulnerabilizados se dá pelas tensões históricas com as políticas de guerra aplicadas pelo Estado. Na falta, na ausência de políticas que garantem direitos humanos, direito à terra e direitos básicos de sobrevivência para a qualidade de vida da população negra e pobre nos territórios.
Os territórios são marcados por relações de poder que, historicamente, acentuam as desigualdades sociais e criminalizam a população negra e pobre sobre seus lugares e recursos naturais. No Brasil, esse fenômeno se manifesta de maneira acentuada nas favelas e periferias, em territórios quilombolas e terras indígenas, onde os impactos da degradação ambiental são amplificados pela violência do Estado e a exclusão social e racial. A guerra às drogas, que se intensificou ao longo das últimas décadas, é uma das faces mais cruéis desse processo, pois, além de agravar a situação de violência, também resulta em uma série de impactos ambientais que afetam diretamente a vida dessas populações.
Enquanto isso, falta comida na sua mesa, elas respiram partículas de poluição matadoras, bebem água poluída, são contaminadas pela mineração, pisam em lixo e esgoto a céu aberto, enquanto assistem a disputas de forças violentas nas vielas onde moram. O brasileiro nasce sendo afetado pelo racismo, e o racismo ambiental é mais uma escala da política genocida do Estado.
Como as pessoas estão vinculadas e não vinculadas ao seu lugar? Seja pelo que fazem, porque é a última alternativa da sua vida, seu trabalho ou seu amor por ele ou qualquer outra coisa. Como as pessoas se movem, intra e entre diferentes níveis de desigualdades raciais e sociais?
Ao contrário de uma política de garantia de moradia, de saúde pública, qualidade ambiental e educação, a guerra às drogas é uma ação punitivista e não uma questão de direitos humanos. Isso leva a um aumento da militarização das favelas, com a presença constante de forças policiais que, com a autorização da mão armada do Estado, aplica a política genocida nestes territórios. A presença do Estado constantemente resulta em episódios de violência, destruição de bens, assassinatos e deslocamentos forçados de famílias em áreas já destinadas como zonas de sacrifício de populações vulnerabilizadas.
De acordo com a Fundação João Pinheiro2, o déficit habitacional no Brasil é composto por situações de coabitação, precariedade das moradias e o ônus excessivo com aluguel. Com base no Censo de 2022, estima-se que há mais de 6 milhões de domicílios em déficit, concentrados nas regiões metropolitanas do país, o que representa mais de 8% dos domicílios particulares que necessitam de políticas públicas de moradia popular. Em todas as regiões, o maior percentual desse déficit está em domicílios chefiados por mulheres. Além disso, os domicílios chefiados por pessoas pretas e pardas são os que mais sofrem com a coabitação, o ônus excessivo do aluguel e a precariedade das moradias, representando aproximadamente 66% do total. Ressalta-se que os domicílios chefiados por pessoas negras concentram 74,2% do déficit relacionado à precariedade habitacional, o que significa que, das 1.682.654 moradias precárias identificadas pela Fundação João Pinheiro, 1.248.831 são chefiadas por pessoas negras.
Além dos danos diretos causados pela violência de Estado, a guerra às drogas também implica uma série de consequências ambientais prejudiciais aos territórios. O uso de helicópteros da polícia que intimidam a comunidade em incursões nas favelas, por exemplo, pode provocar danos às vegetações, ao solo e ao ar, além de aumentar a poluição sonora. Em zonas rurais e florestais, aumenta o desmatamento. O agravamento do desmatamento e a exploração ilegal em territórios indígenas e quilombolas, por exemplo, têm um impacto devastador sobre o equilíbrio ecológico e cultural dessas regiões, colocando em risco a biodiversidade e os modos de vida sustentáveis dessas populações.
A guerra às drogas representa uma ameaça dupla: ao mesmo tempo em que expõe as comunidades negras, indígenas e periféricas à violência do Estado, ela também coloca em risco a sua capacidade de adaptação às mudanças climáticas. As populações mais vulnerabilizadas são aquelas que enfrentam o impacto das catástrofes ambientais, como enchentes, secas prolongadas e a degradação dos recursos naturais, que são exacerbadas pela falta de infraestrutura e pelo descaso do governo. Quando essas comunidades já enfrentam as consequências de uma guerra sem fim contra o tráfico, sua resiliência é ainda mais comprometida, dificultando suas estratégias de adaptação às mudanças climáticas e a busca por justiça social, racial e ambiental.
E podemos, e devemos, traçar conexões com a grilagem de terras no Brasil, onde, mais uma vez, a taxa de pessoas assassinadas pela polícia e encarceradas é alarmantemente alta, à medida que são deslocadas de suas terras, de suas culturas e de sua comunidade. E com os eventos climáticos, cada vez mais intensos e presentes, que podem deslocar qualquer um de nós a qualquer momento. E isso no campo ou na cidade, espaços de profunda interdependência nos quais suas populações são profundamente marcadas pela violência de Estado, que lhes tira tudo, em especial sua humanidade.
Adicionalmente, uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Municípios (CNM)3 aponta que mais de 2,5 milhões de moradias foram afetadas por desastres entre 2016 e março de 2024. Para compreender as dinâmicas raciais envolvidas nesse cenário, uma pesquisa do Instituto Pólis4 em três capitais brasileiras — Belém, Recife e São Paulo — identificou, com base em dados oficiais, um padrão de segregação socioespacial marcado pelo racismo. Em todas essas cidades, há uma concentração de famílias de baixa renda e população negra nos chamados aglomerados subnormais, ou seja, áreas com padrão urbanístico irregular, deficiência de serviços públicos e situadas em locais de restrição à ocupação. As pessoas negras e empobrecidas enfrentam maiores dificuldades de acesso à infraestrutura urbana, como saneamento básico e água potável, além de condições ambientais mais adversas, o que as torna mais vulneráveis a riscos de desastres.
É essencial que as políticas públicas enfrentem simultaneamente os desafios da segurança pública e os problemas socioambientais que afetam as comunidades vulnerabilizadas. A implementação de políticas de segurança que respeitem os direitos humanos, aliada a ações de preservação ambiental, é fundamental para promover a verdadeira justiça social, racial e climática no Brasil.
- Gonzalez, Lélia; Hasenbalg, Carlos A. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982 ↩︎
- Para mais informações, acesse: <https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/> ↩︎
- Para mais informações, acesse: <https://cnm.org.br/biblioteca/exibe/15316> ↩︎
- Para mais informações, acesse: <https://polis.org.br/estudos/racismo-ambiental/> ↩︎
Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023) e atualmente é Assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra.
O artigo faz parte da coletânea de textos publicados na Revista Platô – Intersecção
O que política de drogas, uso da terra e justiça climática têm em comum?
Para começar a responder essa pergunta complexa, apresentamos a edição especial da revista PLATÔ INTERSECÇÃO. Uma coletânea de 17 artigos inéditos que detalha os impactos das atuais políticas de drogas sobre os crimes ambientais e aponta caminhos possíveis para romper esse ciclo de corrupção, racismo e desperdício de recursos públicos.
A emergência climática é real. A urgência de acabar com a guerra às drogas também.
Acesse a Revista Platô: https://iniciativanegra.org.br/interseccao/