Rede criada na França reúne brasileiros que se sentem ameaçados pelo governo Bolsonaro

Grupo criado em Paris reúne acadêmicos, estudantes e representantes de minorias

por Márcia Bechara no Folha de São Paulo

Ato de criação da rede Solidarité France Brésil, no Instituto de Altos Estudos da América Latina, em Paris – Márcia Bechara:RFI

Plateia lotada e muitas pessoas sentadas no chão. O anfiteatro do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) esteve repleto de estudantes, professores, jornalistas e intelectuais dos dois lados do Atlântico nesta sexta-feira (18) em Paris, para o lançamento de uma rede internacional que visa ajudar brasileiros, estudantes e profissionais, que se sintam ameaçados por decisões ou atos do governo brasileiro.

Entre o público-alvo dos pesquisadores, professores e brasilianistas presentes, estudantes que correm o risco de perder bolsas de estudo por “critérios ideológicos” (como anunciado em nota na imprensa brasileira), comunidade LGBT, pesquisadores e ativistas quilombolas, do movimento negro, jornalistas, feministas, entre outros. Muito aplaudido, o filósofo brasileiro e colunista da Folha Vladimir Safatle lembrou do revisionismo do governo Bolsonaro, que “neste momento mesmo, tira dos livros de história a expressão ‘ditadura’ e substitui por ‘movimento’ militar”.

“Acabou, foi uma ruptura e é hora de viver o luto desta Nova República. Somos o único grande país da América Latina que elegeu através do voto direto um governo militarista de extrema direita. Isso é inédito no continente. (…)Tudo o que vier [no Brasil] a partir de agora não terá conexão com o que quer que seja que tenhamos vivido no passado. Mas não podemos deixar que acabem com a imaginação política do Brasil”, disse Safatle.

Rede de solidariedade

“A Arbre nasceu como uma associação dedicada à pesquisa sobre o Brasil na França, mas nos últimos dois anos nos posicionamos fortemente contra a condenação de Lula, o assassinato de Marielle Franco e durante as eleições presidenciais”, relata a historiadora Juliette Dumont, uma das organizadoras da rede de solidariedade.

“Lançamos um manifesto de defesa da democracia, que foi assinado por mais de 200 intelectuais na França e na Europa, de todas as tendências, como o economista Thomas Piketty, por exemplo”, lembra Dumont.

“Estamos agora articulando esta rede de solidariedade para brasileiros com a ajuda de intelectuais e associações. Estamos construindo essa rede. Tentamos reagrupar iniciativas que já existem, porque somos um grupo pequeno. Estamos em contato com uma rede norte-americana universitária que possui o mesmo objetivo e reúne hoje 230 universidades, liderado por James Green, um grande especialista do Brasil [diretor da Associação de Estudos Brasileiros da Brown University, nos EUA]”, conta a historiadora.

Entre os próximos passos da rede Solidarité France Brésil (Solidariedade França Brasil) consta o combate à decisão recente do governo francês de aumentar em quase 1.500% a taxa de inscrição para pós-graduação em universidades da França para estudantes não-europeus. Ao lado das universidades de Lyon 2, Clermont-Auverne e Sorbonne Nouvelle-Paris III, o IHEAL deve se posicionar para continuar recebendo estudantes brasileiros.

“Fomos contactados na Arbre por diversos estudantes brasileiros que nos relatam que trabalham no Brasil sobre assuntos como a ditadura militar ou temas que são difíceis de serem tratados sob o atual governo e que gostariam muito de vir estudar na França. Isso é apenas uma das coisas que começamos a articular. Uma outra modalidade de ação será a criação de um canal YouTube para comentar notícias brasileiras, um tipo de mídia acessível ao grande público para continuar a mobilizar a opinião na França e outros países da Europa, e para manter nossa presença na imprensa francesa”, afirmou Dumont.

Segundo a historiadora Juliette Dumont, uma das palestrantes da noite, Erika Campello, presidente da associação Autres Brésils, está em contato com associações como Act Up, France Libertés e Anistia Internacional para ajudar brasileiros da comunidade LGBT e outros grupos vulneráveis, no sentido de conseguir criar uma ponte entre o que estas pessoas fazem no Brasil e possíveis campos de estudo e trabalho na França. “Vimos a grande campanha, por exemplo, que a Anistia Internacional fez para pedir justiça sobre o assassinato de Marielle Franco”, lembra.

França, terra de asilo?

“Já temos colegas brasileiros que foram obrigados a deixar o Brasil por causa de ameaças relacionadas a seu trabalho de pesquisa”, revela a historiadora. “Como podemos lhes acolher, fazer com que possam chegar bem aqui? São professores e pesquisadores que falam de temas como a ditadura, movimentos sociais, quilombolas, terras indígenas, eles estão sofrendo ameaças reais. Assistimos a tentativas de censura no centro da universidade brasileira, com aquele discurso de filmar professores e lhes denunciar porque ‘promovem ideologia’ contra o governo”, diz.

A historiadora afirma que um dos papeis dessa nova iniciativa será alertar toda a rede de contatos na França para ajudar colegas brasileiros em dificuldades. Os interessados, segundo Dumont, podem entrar em contato através do email [email protected] .

“Precisamos criar uma força coletiva. Temos uma tradição de solidariedade internacional na França, nascida entre os anos 1960-1970. O país acolheu muitos exilados das ditaduras latino-americanas, aliás. Não vivemos mais o mesmo contexto político, nem na França, nem na Europa. O problema do asilo político é complicado neste momento. As fronteiras europeias estão muito mais fechadas. A questão dos migrantes é um tema muito sensível neste momento na Europa”, lembra Dumont.

“É uma questão que ultrapassa o Brasil. Como a França continuará sendo uma terra de asilo para aqueles que são perseguidos em seus países? Alertando sobre o que se passa no Brasil, podemos dizer: é importante que a França continue a manter essa tradição de solidariedade. Estudantes e professores brasileiros nos escrevem dizendo ‘Para nós, é a França. Porque é a terra dos direitos humanos’. Isso nos fornece uma responsabilidade suplementar para agir”, conclui a historiadora.

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