Redução da maioridade: a criminalização do excluído

Para Procurador-Geral de Justiça de SP, medida consistiria “pecado”. Para Procurador paranaense, pobres não têm direito de serem jovens.

Por Luccas Gissoni, do Carta Maior

A redução da maioridade penal provocou nos meios jurídicos e intelectuais o mesmo efeito que o PL 4330 teve e tem no mundo do trabalho: indignação.

Mas vai além disso. Nos dois casos, a ofensiva conservadora devolveu à sociedade, aos movimentos sociais, aos círculos progressistas e democráticos algo precioso que parecia haver se perdido – a energia para o engajamento.

Exemplo disso foi a reunião desta 5ª feira na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, na capital paulista.

Promotores, juristas, autoridades e sociedade civil para debater a criminalização da infância embutida na PEC 171, que reduziria a inimputabilidade penal de até 18 para até 16 anos de idade. Promovido pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional da Escola (CEAF-ESMP), o evento contou com a presença de Olympio de Sá Sotto Maior Neto, procurador de justiça e coordenador do Centro de Proteção aos Direitos Humanos do Ministério Público (MP) do Paraná, integrante do Grupo de trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional de Justiça; Munir Cury, procurador de justiça aposentado do MP-SP e Gabriela Gramkow, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), além de Maria Izabel Sampaio, assessora do Centro de Apoio Operacional de Infância e Juventude e Idoso, do MP, e do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Márcio Fernando Elias Rosa.

A inconstitucionalidade “formal e material” da PEC 171, como a classificou o Procurador-Geral, Márcio Fernando, foi a tônica das intervenções. “Carece de razoabilidade”, disse ele, “tendo em vista que não se trata do meio adequado para atingir o objetivo que se busca, diminuir a criminalidade; a inserção dos adolescentes no sistema prisional não seria um meio adequado para isso”, fuzilou.

Se fosse preciso recorrer a argumentos de cunho moral e religioso, o Procurador diria que a redução da maioridade penal seria “pecado”, uma vez que se ancora no sentimento de vingança da sociedade para com o adolescente, “não na ideia de justiça’. “Busca-se um afastamento do problema, não resolvê-lo”, emendou Rosa, para arrematar: “o que se pretende é suspender a cidadania e a condição humana dos jovens, guardando-se confortável distância em relação aos mesmos (como se o adolescente) fosse “um capeta em estado larvar, como se o problema fosse a própria existência desses jovens”.

Já para Munir Cury, não estamos diante de um problema jurídico, que exige solução legal. Considerando adequada a legislação existente, o procurador aposentado advoga sua “exata aplicação”, argumentando que as medidas socioeducativas seriam “pessimamente aplicadas” pelos municípios. Cury trouxe também o conceito jurídico de “fraternidade”, explicando que o adolescente “é nosso irmão, e faço com ele o que gostaria que fosse feito comigo”.

Gabriela Gramkow vê uma dimensão ainda mais grave no problema. Existe, no seu entender, uma política de matança por parte do Estado brasileiro, que, como mostra o Movimento Mães de Maio, tem “registro de lugar, idade, classe e cor”.

O que a redução da maioridade penal agride é o entendimento amplamente abraçado no ambiente jurídico que vê o adolescente como vítima, e não causa, da violência.

A renúncia a esse princípio fere gravemente a perspectiva ética de cuidado – leia-se, educação, formação, amparo e oportunidades – e não de punição em relação às crianças e adolescentes na sociedade brasileira.

Ao invés disso, envereda-se para a lógica da suspensão de seus projetos de vida e de matança.

Desconstruindo o próprio argumento usado pelos defensores da PEC, de que o jovem de 16 anos já teria discernimento sobre o certo e o errado, a psicóloga Gabriela Gramkow afirma que entender que ele tem tal discernimento implica “convidá-lo para a produção da vida, e não da morte”. Dado que a juventude preta, pobre e periférica enfrenta ausência de direitos e falta de perspectivas, “cabe oferecer-lhe uma oportunidade de usar esse discernimento a favor da vida”, argumenta.

A responsabilização dos culpados deve ter a perspectiva da corresponsabilidade, mas a PEC 171 é uma proposta que desresponsabiliza Estado e sociedade no seu papel garantidor e protetor de direitos, concluiu. Não é isso a verdadeira impunidade?

Olympio Sotto Maior aponta a existência de uma “interessante coincidência” na numeração da PEC em questão: 171 é o número do artigo do Código Penal que criminaliza a conduta de obtenção de vantagem ilícita, em prejuizo alheio, induzindo alguém ao erro, chamada estelionato.

O jurista afirma que é inconstitucional qualquer norma “tendente” a abolir direito fundamental, de modo que tal abolição não precisa ser direta nem comprovada. A PEC 171, no seu entender, estaria contrariando a Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Assinada pelo Brasil, estabelece a inimputabilidade penal até os 18 anos, bem como a proibição do retrocesso em direitos humanos.

Sotto Maior chama a atenção para um aspecto pouco discutido do problema. A adolescência, lembra o jurista, envolve a experiência da “crise”, momento em que o jovem quer romper as amarras, entrar para o mundo adulto. Romper regras e construir o pertencimento a um grupo faz parte dessa travessia.

O problema, diz Sotto Maior, é que essa experiência não é a mesma para todas as classes.
A verdade é que os jovens pobres não têm o mesmo direito de experimentar a crise que os ricos. A redução da maioridade ergue uma nova muralha a reforçar esse interdito – uma muralha prisional.

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